Próteses que são obras de arte
Filha de um português, Sophie de Oliveira Barata cria próteses de abrir a boca de espanto. São feitas a pensar em clientes que, ao invés de esconderem a deficiência, querem, antes, afirmar a sua diferença. Esta reportagem foi publicada originalmente na revista do Expresso de 18 de janeiro de 2014
Numa das paredes do estúdio bem iluminado de Sophie de Oliveira Barata, no bairro de Harlesden, em Londres, amontoam-se os moldes de gesso com vários pés, mãos e braços em tamanho real. Num canto, uma perna com uma cobertura ultrarrealista feita de silicone e completada com unhas, sinais e veias.
Numa das paredes brancas estão próteses bem mais futuristas: um braço com uma cobra enrodilhada, uma perna que parece um robô metálico com gavetas, gadgets, luzes e lasers, outras com materiais tão inesperados como vidro, madeira ou cristal.
O pequeno ateliê de Sophie parece uma mistura de santuário católico do Sul da Europa (e seus pedaços de corpo humano à espera de intervenção divina) com uma cena saída dos filmes das séries “Exterminador Implacável” ou “Alien vs Predadores”.
Filha de um português, Sophie, de 31 anos, tirou o curso de Efeitos Especiais para Filme e Televisão na University of the Arts, em Londres. A sua única experiência cinematográfica, no entanto, ficou-se pela criação de uma cabeça que entrou no filme “Nuit de Chien”, de 2008, do realizador Werner Schroeter, com produção franco-alemã-portuguesa dirigida por Paulo Branco (“Nunca me pagaram”, diz Sophie entre duas risadas e um encolher de ombros). Em vez do cinema, trabalhou oito anos numa das maiores empresas britânicas de próteses.
Sophie no seu estúdio, a trabalhar numa prótese ultrarrealista, onde são usados modelos reais para esculpir as próteses até ao ínfimo detalhe.
Em 2011 fundou The Alternative Limb Project. Continua a fazer as mesmas próteses extremamente realistas que já antes fazia na empresa (“São o meu ganha-pão”, diz ela) – verdadeiras esculturas construídas a partir de tiras finíssimas e translúcidas de silicone, moldadas à mão durante horas e posteriormente coloridas e cozidas num forno. Mas a alma do projeto são as próteses alternativas, destinadas a clientes que não querem esconder a deficiência mas antes afirmar a sua diferença.
“Quem perde um membro [do corpo] nunca mais é a mesma pessoa. Estas próteses alternativas são, por isso, uma forma de expressão, uma celebração, uma forma de empowerment”, explica. “A tecnologia, em geral, procura recriar um membro que seja o mais realista possível e que atue de forma muito realista em movimento. Eu faço o oposto. As minhas próteses alternativas são fruto de uma imaginação quase infantil. Brincam com o alter-ego das pessoas. Chamam a atenção para a deficiência física de uma forma positiva”, diz Sophie. “Em vez de olhar para o que falta, as pessoas olham para o que está lá. Ter um membro alternativo é uma forma de recuperar o controlo e afirmar: eu sou um indivíduo, e esta prótese reflete isso mesmo, reflete a essência de quem eu sou.”
A menina Pollyanna Hope tinha 2 anos quando um autocarro trepou o passeio e a atropelou, esmagando-lhe a perna direita (a avó morreu no acidente, a mãe ficou muito ferida). Aos 8 anos Pollyanna já tinha usado 12 próteses diferentes e foi de certa forma a inspiração para The Alternative Limb Project de Sophie.
A alma do projeto de Sophie são as próteses alternativas, para quem “quer afirmar a diferença”.
“Todos os anos fazia uma perna nova para a Pollyanna e todos os anos ela pedia algo diferente. Começou por ter umas porquinhas Peppa a andar de bicicleta e a comer gelados. Depois foi uma cena de Natal. A ida à clínica de próteses onde eu trabalhava deixou de ser uma chatice para ela. Passou a ser uma experiência que adorava. Ela dizia-me, muito entusiasmada: ‘Tenho uma ideia gira para a minha próxima perna!’ Os amigos e a família perguntavam-lhe o que é que a nova prótese ia ter. Era óbvio que o processo de reabilitação estava a ter êxito”, diz Sophie.
O passo seguinte foi encontrar alguém interessado em ter uma prótese verdadeiramente diferente. Sentada em frente do computador, Sophie teclou as palavras “model”, “amputee” [modelo, amputação] no motor de pesquisa Google. Foi dessa forma que chegou ao encontro de Viktoria Modesta, uma modelo, cantora e performing artist nascida na Letónia e radicada em Inglaterra desde a década de 90.
VIKTORIA MODESTA. Esta modelo e artista, de 27 anos, nasceu com uma malformação na perna esquerda e, aos 19 anos, optou por amputá-la.
Viktoria nasceu com uma malformação na perna esquerda. Após 13 operações em seis anos, ela optou pela amputação – uma decisão radical, aos 19 anos, que impressionou Sophie. As duas mulheres acabariam por desenvolver uma relação de grande proximidade.
The Alternative Limb Project desenhou várias próteses para Viktoria Modesta, incluindo uma perna estéreo e uma perna cristalizada – uma peça simultaneamente provocadora e delicada, incrustada com dezenas de brilhantes, espelhos e cristais, patrocinada pela marca Swarovski -, que Modesta usou na cerimónia de encerramento dos Jogos Paralímpicos de Londres, em 2012. Nessa noite, vestida de Rainha da Neve com prótese alternativa, Modesta emergiu de forma espetacular de uma gigantesca jaula de gelo e atuou ao lado de vários patinadores, ao mesmo tempo que a banda Coldplay tocava a canção ’42’.Um momento que transformou rapidamente Viktoria numa minicelebridade.
Sophie desenvolveu uma prótese para a atleta Stefanie Reid, que conquistou a medalha de ouro no salto em comprimento nos Jogos Paralímpicos de Londres. Reid foi desde então contratada como modelo publicitário, e Sophie transformou uma antiga prótese desportiva (lâmina) num verdadeiro candelabro de espelhos, lascas de vidro e luz
De acordo com Sophie, os Jogos de 2012 foram importantes porque ajudaram a mudar a perceção que as pessoas tinham dos portadores de deficiências físicas. Os Jogos também tiveram influência nos próprios amputados, que passaram a ter mais autoconfiança na afirmação da diferença e na exibição da sua condição de forma positiva.
Sophie desenvolveu uma prótese para a atleta Stefanie Reid, que conquistou a medalha de ouro no salto em comprimento (F44) nos Jogos Paralímpicos de Londres. Reid, de 31 anos, foi desde então contratada como modelo publicitário, e Sophie transformou uma antiga prótese desportiva (lâmina) num verdadeiro candelabro de espelhos, lascas de vidro e luz. “Quando Stefanie andar com esta prótese, ela vai espelhar e refletir tudo o que está à volta dela”, explicou Sophie, entusiasmada.
Por vezes, a lusodescendente trabalha com outros artistas especializados em materiais ou tecnologias que ela não domina totalmente.
O fabrico de uma prótese alternativa pode demorar dois ou três meses, e o seu custo varia entre as três e as oito mil libras (€3.700 a €10.000), dependendo da sofisticação e do trabalho envolvido. A peça favorita de Sophie foi a prótese construída para o soldado Ryan Seary, um dos raros clientes masculinos.
“Esta prótese mistura o irreal com o real – a cobertura imitando ossos e músculos e, por outro lado, o pé extremamente realista, com dedos, unhas e pelos (que recolhi da parte de trás do pescoço de Ryan). Foi um desafio tão grande que tive de pedir ajuda ao meu irmão Eduardo, que é arquiteto”, diz.
RYAN SEARY A explosão de uma bomba caseira na província de Helmand, no Afeganistão, arrancou o braço e a perna esquerda a este ex-militar
PRÓTESES SIM LIMITES PARA A IMAGINAÇÃO
Todos os projetos são discutidos em pormenor com os clientes, e esse relacionamento pessoal é um dos aspetos do trabalho de que Sophie mais gosta. “Recentemente, um amputado veio ter comigo e explicou-me que queria uma prótese parecida com uma nave espacial, com frinchas através das quais se podem ver luzes e aliens à bulha, como numa cena do filme ‘Alien vs Predador’”, diz Sophie, enquanto mostra as dezenas de páginas já preenchidas com esquemas e estudos que se amontoam numa das mesas de trabalho.
Nada é impossível. A imaginação, fantasia e criatividade parecem não ter limites.
O trabalho da artista anglo-portuguesa despertou o interesse das cadeias de televisão CNN e ITV, de jornais como “The Observer” e “The New York Times”, e da revista “Wired”. Sophie já participou como oradora em conferências TED Talks. Apesar de ter vivido em Loulé e depois em Cascais, entre os 3 e os 10 anos, a artista não fala português. Filha de uma inglesa e de um português – Manuel de Oliveira Barata, um dos primeiros funcionários portugueses da Comissão Europeia -, Sophie tem feições morenas, fala de forma entusiástica e afetuosa, agitando as mãos e rindo-se frequentemente.
“Adorei Portugal e tenho imensa pena de não falar a língua. Por vezes peço ao meu pai para falar [em português] comigo, mas desistimos logo. É frustrante”, diz.
O bairro de Harlesden, curiosamente, é um dos mais cosmopolitas de Londres, com as vagas de portugueses, brasileiros e colombianos a tomarem o lugar dos imigrantes mais antigos, provenientes da Irlanda e das Caraíbas. “Ao menos isso: trabalho num bairro onde posso comer facilmente um bom pastel de nata.”
Fonte: expresso
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