Toda narrativa cinematográfica ancorada em fatos reais enfrenta um duplo desafio: o de se afirmar como criação artística autônoma e, ao mesmo tempo, manter a aderência à verdade do enredo que a originou. Raras vezes no cinema brasileiro esse desafio foi superado de maneira mais feliz e delicada que em “Pequeno segredo”, de David Schurmann. Afirmando o poder e a vocação de fabulação do cinema, o filme em primeiro lugar conta uma história – história que fala diretamente ao sentimento de qualquer espectador com o coração desarmado.
Mas essa narrativa vai muito além da reconstituição linear da experiência, já em si poderosa, vivida pela família Schurmann a partir da adoção de Kat, uma menina portadora do vírus HIV: com roteiro, fotografia e interpretações impecáveis, “Pequeno segredo” cria uma trama na qual personagens e acontecimentos muito distantes (em mais de um sentido) convergem de forma comovente. Uma trama cujo significado é dado – como na vida – pelo embate permanente entre acaso e escolha, entre a vontade e o destino, entre o amor e a indiferença que se manifesta muitas vezes na forma brutal do preconceito.
Foi justamente o medo do preconceito um dos motivos que levaram os Schurmann – famosos por terem dado a volta ao mundo em um veleiro, nos anos 90 – a manter em segredo a condição da filha adotiva (para ela própria, inclusive). Após a morte da menina, uma experiência emocionalmente devastadora para a família, Heloisa Schurmann (interpretada por Julia Lemmertz) decidiu contar essa história como uma forma de lidar com a dor, em um livro que passou relativamente despercebido, “Pequeno segredo – A lição de vida de Kat para a família Schurmann”. Já ao ler os manuscritos da mãe, David decidiu que esse drama familiar tinha que ser levada ao mundo também através do cinema, por seu poder de inspirar as pessoas.
“Pequeno segredo” não conta apenas a vida de Kat já pré-adolescente, com seus questionamentos e conflitos típicos da idade intensificados pelo drama que ela própria desconhece: paralelamente, o filme conta outra história de amor e laços familiares, a de seus pais biológicos. O viajante neozelandês Robert (Erroll Shand) conheceu e se apaixonou por Jeanne (Maria Flor, no melhor papel de sua carreira) em Manaus, e a este encontro improvável se somou o acaso de um acidente que afetou tragicamente o futuro do casal. Indo morar com Robert em seu país natal, Jeanne engravida, mas tem que lidar com a hostilidade da sogra e a difícil adaptação a uma nova realidade. Quando ela conhece o casal Schurmann, de passagem pela Nova Zelândia em seu périplo marítimo, Kat é um bebê. Pouco mais tarde, a doença contraída por Jeanne numa transfusão de sangue se manifesta.
Nessa interseção entre os dois eixos narrativos, emergem, convergem e ganham sentido diversas questões subjacentes à trama: a natureza do amor e da família; a capacidade de superação; a necessidade de enfrentar a adversidade e reinventar a própria história. Por tudo isso, e pelo refinamento técnico e de linguagem que se camufla na sua simplicidade aparente, “Pequeno segredo” é, sim, o melhor filme brasileiro dos últimos anos. No estilo, na forma e no conteúdo, está plenamente credenciado para disputar e vencer o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Com o apoio e a torcida, espera-se, de todos os brasileiros – mesmo daqueles que, sem terem assistido ao filme, se sentiram derrotados com sua indicação.
Fonte: G1