O jogo que não vimos. A experiência de deficientes visuais em estádios de futebol.
Imagine-se por duas horas em um quarto escuro, completamente sem visão. Agora imagine que esse quarto foi teletransportado para um estádio de futebol. À sua volta, a torcida em polvorosa, o rádio em seus ouvidos e nem uma fresta de luz para ver a partida. Tive essa experiência na partida Corinthians x Ceará, no Pacaembu, pela 27ª rodada do Campeonato Brasileiro. Ao meu lado Marcos Fidalgo, com quem tenho o prazer de dividir este espaço, e seu pai, Pedro Fidalgo, que foi um dos narradores da partida que eu não vi. Não vi o Ceará abrir o marcador aos 16 minutos do primeiro tempo, nem ampliar o placar também na primeira etapa, mas senti com bastante força a presença da torcida corintiana no primeiro gol do Timão e ainda mais no empate. Os gritos de “não para, não para, não para” com a melodia de Roberto Carlos parecem ainda mais nítidos quando não temos o auxílio da visão. Os lances que podem nem ter sido tão perigosos parecem sufocantes quando não podemos vê-los. Como diria Galvão Bueno, “é teste pra cardíaco, amigo!”.
Ao meu lado, com paciência de bibliotecário, seu Pedro ia narrando lance a lance com a riqueza de detalhes que o rádio atropela. “O Corinthians está atacando para o lado das arquibancadas, está de meião branco, calção preto e camisa branca. O Ceará está com meião preto, calção branco e camiseta listrada branca e preta, parecida com a do Santos”, descrevia os times antes do início da partida.
Como eu estava com os ouvidos mais afiados do que o normal, pude perceber um deslize do repórter do rádio. Em um determinado momento da transmissão ele vociferou que a torcida pedia a presença de Defederico no Corinthians, coisa que não aconteceu. Porém, para a sorte do criativo repórter, Defederico foi decisivo para o empate corintiano marcando o segundo gol do Timão. A torcida explodiu em gritos.
A vibração da torcida é um fator muito importante para um cego no estádio. Na TV, além de a narração ser bem menos preocupada com o jogo, você não sente a energia de 50000 pessoas cantando e vibrando a cada lance. E, nesse caso, a visão é apenas um detalhe. Marcos, assim como outros deficientes visuais, só querem se sentir mais um no bando de loucos. Mais um a vibrar com seu time do coração.
Mas a inclusão termina ao apito do juiz. Minha meta no fim da peleja era me portar como um defi ciente visual, sair do estádio segurando um braço amigo e uma bengala. E lá fui eu. Mais uma vez, meu xará foi meu guia. Ia me avisando sobre os degraus, me alertava sobre os perigos à frente e ainda me localizava geografi camente. Assim fui. Tropeçando no começo, sofrendo para encaixar meu pé tamanho 44 nos degraus sem vê-los e batendo com a bengala em alguns objetos que até agora não sei o que são. Assim fui do portão 13 ao 23. Chegar ao estacionamento de imprensa me deu alívio e tristeza.
A felicidade de voltar a enxergar, mesmo que nos primeiros minutos com a vista embargada, foi tão grande que valorizei cada folha verde, cada nuvem branca e cada coisa que eu via, mas o lado triste foi saber que provavelmente nunca mais voltarei ao estádio com meus ouvidos tão apurados, será a última vez que eu prestarei tanta atenção em uma partida de futebol. Que eu sentirei aquilo pelos ouvidos e poros. Provavelmente será a última vez.
“VENHO… E QUEM DISSE QUE NÃO VEJO?”
Por Marcos Fidalgo
Marcos Fidalgo: a visão o abandonou; o futebol, não
Não seria daquela vez que Ronaldo voltaria. Mesmo assim, escolhi sua camisa para ir ao Pacaembu, assistir a Corinthians x Ceará. Nunca imaginei que Ronaldo se tornaria um louco do bando corintiano. Também nunca imaginei que perderia a visão. De repente, um cartão vermelho e ela foi expulsa, me forçando a agir. Decidi posicionar os quatro
sentidos bem abertos e ir ao ataque. No fim das contas, a vida deu jogo.
Os fogos, as buzinas e os “vai, Corinthians!” diziam-me que já estávamos na avenida Pacaembu. No estádio, o amigo Jorge, eu, Pedro, que se vendaria por 90 minutos, e meu pai, que narraria a Pedro, nos sentamos em fileira. Ajustei o fone e liguei o rádio. Costumo selecionar várias emissoras, para mudar sempre que os locutores fizerem piada ou propaganda. Além dos narradores do rádio, conto com as narrações de Jorge e de meu pai. Sem falar nos milhares de narradores que compraram seu ingresso. Com suas palmas, seus gritos de “Aaahhh”, “Uuuhhh”, e de “Gooolll”, são eles que me dão o desfecho dos lances.
Na chegada ao estádio, Pedro, o pai, mostra o caminho. No campo, ouvidos atentos ao rádio e à “narração” da torcida ajudam a acompanhar o jogo — e torcer
“Para onde vamos atacar?”, perguntei a Jorge. “Para o portão principal.” “Apita o árbitro, bola rolando no Pacaembu!” “Volta, volta!”, gritava Jorge. “E vem Ceará, Marcelo bateu… É gol!” Sequer houve tempo para o silêncio, comum às torcidas dos outros clubes. “Corinthians… Corinthians minha vida…” “E vem Corinthians buscando o empate. Alessandro rolou para Jorge Henrique, Jorge Henrique devolveu para Alessandro… Na hora de construir ou reformar…”, mudei de emissora. “Apita o árbitro, fim do primeiro tempo!” Tirei o fone.
“Vamo, vamooo!”, grita Jorge. Recoloco o fone. “E o Corinthians mexe para o segundo tempo. Sai Edu e entra Danilo!” Era a alteração que pedia. Mas não houve melhoras. Dei um rápido gole na água de copinho, refrescando a língua que Danilo queimara. E em mais um contra-ataque adversário: “Magno Alves cortou, bateu… Gol!”.
Mas o Corinthians reage. Primeiro com Paulinho, que “entrou, bateu…”. E depois com Defederico, que “bateu, direto…”. Em ambos os lances, os 30000 pagantes me deram o desfecho que esperava: “Gooolll!” Fim de jogo. Pedro tirou a venda, aliviado. Claro que não seria com um vendar de olhos que ele se acostumaria com a cegueira. Tampouco é algo que eu consigo explicar, assim como é inexplicável o que é ser corintiano.
Fonte: Placar
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