“O Cego no Cinema”. A deficiência contada na Literatura de Cordel
Literatura de cordel é um tipo de poema popular, originalmente oral, e depois impressa em folhetos rústicos ou outra qualidade de papel, expostos para venda pendurados em cordas ou cordéis, o que deu origem ao nome originado em Portugal, que tinha a tradição de pendurar folhetos em barbantes. No Nordeste do Brasil, o nome foi herdado (embora o povo chame esta manifestação de folheto), mas a tradição do barbante não perpetuou.
Ou seja, o folheto brasileiro poderia ou não estar exposto em barbantes. São escritos em forma rimada e alguns poemas são ilustrados com xilogravuras, o mesmo estilo de gravura usado nas capas. As estrofes mais comuns são as de dez, oito ou seis versos. Os autores, ou cordelistas, recitam esses versos de forma melodiosa e cadenciada, acompanhados de viola, como também fazem leituras ou declamações muito empolgadas e animadas para conquistar os possíveis compradores.
O Cego no Cinema
Um mudo disse a um mouco
que lembra quando nasceu,
O mouco disse também
que um aleijado correu.
O cego disse que viu
quando o defunto morreu.
O mudo, o cego e o mouco,
cada um com seu problema
Os três então se uniram
pra resolverão dilema.
E depois resolveram ir
a uma sessão de cinema.
Foram ao cinema Glória
que não fica muito além,
e quando chegou a vez
do cego pagar também,
ele disse: -Eu vou pagar
com uma nota de cem!
Quando a moça demorou
para trocar o dinheiro,
o cego abriu o bocão…
e disse pro seu companheiro:
-Uma velha parideira
pare muito mais ligeiro!
Pareciam três babacas
o cego, o mudo e o mouco,
três figuras impolutas
dois otários e um baiôco.
Ouvindo a conversa deles
eu me ri que fiquei rouco.
O cego entrou no cinema
com uma varinha na mão.
Tentou sentar na poltrona,
arreganhou-se no chão.
Ficou ali, esperando
a hora da projeção.
O filme, naquele dia,
era impróprio para 18.
O cego todo metido
numa jaqueta V-8,
além de ser malcriado,
ainda era um cego afoito.
Quando começou o filme,
ia tudo muito bem.
Mas, um trovão de risada,
partindo não sei de quem,
fez o povo dar risada,
e o cego sorrir também.
Vendo a platéia sorrindo,
o cego gritava: -Boa!
Na cadeira, junto ao cego,
sentou-se uma mulher boa.
O cego disse: -Gostosa!
Eu adoro uma coroa!
Já na metade do filme,
o cego se levantou,
procurou uma parede,
mas a mão escorregou
e alcançou um lugar
que a coroa não gostou.
A coroa levantou-se
e disse: -Você ta cego?
Ele disse: -Não senhora,
às vezes eu escorrego.
A madame me desculpe,
de outra vez eu não pego!
A coroa, revoltada,
Foi se sentar lá na frente,
mas um sujeito tarado
gritou logo: -Passa o pente!
Essa coroa enxuta
nem parece que é crente!
Ai, catucaram o cego,
e ele se aborreceu.
Ele disse: -Quem quer a feira?
Na tua mãe mando eu.
Eu já deixei uma dona
porque catucava eu!
No filme o mocinho disse:
-O bandido desmaiou!
O cego, em cima da bucha
gritou bem alto: -Matou!
Que o cego não era cego
todo mundo acreditou.
Antes do filme acabar,
o mouco gritava: -Ei!
Gostasse muito do filme?
O cego disse: -Gostei!
A emoção foi tão grande
que eu quase me borrei!
Gosto de filme de pau,
para me rir com a luta.
Mas, quase meti o braço
numa nega feia e bruta,
que me chamou de cego
comedor de araruta…
Eu nunca perco um filme
quando me dizem que é bom.
Lá, eu entro até usando
uma sandália Veri on,
seja no Art-Palácio,
São Luiz e Trianon…
Assisto briga de galo,
jogo dama e dominó,
vejo corrida no prado,
depois vou dançar forró.
Jogo também de goleiro,
mas pego uma bola só…
O Sport, quando joga,
eu vou para ver Odilon,
Fui ver o treino do Náutico,
não tinha jogador bom.
Quando o Santa joga, eu vou
ver o pique de Ramon!
Fui a urna gafieira
apreciar um embalo,
depois, fui em Ouro Preto
ver uma briga de galo,
e nunca achei atrevido
que pisasse no meu calo!
Eu tenho uma namorada,
só, vocês vendo a paixão.
É bonita e carinhosa,
só me chama tremendão.
Quando me encontro com ela,
é muita chumbregação!
Quando não estou disposto,
ela me chama de mole.
Parada, é um mexe-mexe,
quando anda, um bole-bole.
Se eu reclamo ela diz
que eu sou miado do fole!
No dia que quer transar,
segura na minha mão
e diz: -Meu ceguinho lindo,
to sentindo um comchão.
Se deite aqui do meu lado,
vem meu cavalo do cão!
Eu vivo triste porque
só fiquei sabendo agora
que ela tem um defeito:
fuma como uma caipora,
e é tão mal feita de corpo,
que parece uma albacora…
Também meu amigo-urso
disse que ouviu falar,
que ela disse a um doido
que não queria casar,
que eu, além de ser cego,
não sabia namorar…
Ela só gosta de homem
que é desplanaviado.
Não liga que seja cego,
mudo, surdo ou aleijado.
Ta certo que eu sou um cego,
mas não sou cego tarado!
Disseram também que ela
está carregando um bucho
de não sei quem, mas criar
filho de outros é luxo.
Do jeito que a coisa vai,
não agüento esse repuxo!
Outro dia, viram ela
no beco da malandragem,
junto com uma baranga
que gosta de fuleiragem,
e o ceguinho, aqui, não pode
carregar essa bagagem.
Os que contaram a estória,
garantem que não mentiram.
Dois aleijados dançaram,
e os dois cegos viram
os dois mudos que cantaram
e os dois moucos que ouviram
FIM
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