Transmitir a outras pessoas a essência daquilo que não se pode ver. Graças ao empenho com o qual se debruça sobre essa tarefa, a mineira Camila Araújo Alves, de 25 anos, tem chamado atenção. Ela atua como mediadora de visitas no Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro, mais precisamente na exposição “Kandinsky: Tudo Começa Num Ponto”, que passou por lá antes de aportar em Belo Horizonte. Na capital mineira, não se tem notícia sobre alguém com deficiência visual que tenha um cargo semelhante ao de Camila.
Nascida em Ponte Nova, a jovem veio a Belo Horizonte compartilhar o que tem feito para aperfeiçoar o programa de acessibilidade do CCBB Rio. “Quando uma exposição é composta apenas por pinturas, por exemplo, a questão da contemplação das telas não faz nenhum sentido para mim”, afirma.
É pensando nisso que os mediadores do espaço têm buscado formas diferentes de comunicar melhor as obras dos artistas.
“O meu trabalho é tornar as exposições mais interativas, seja por meio de uma pergunta, de materiais ou de uma música, por exemplo. A ideia é tirar a tela somente do visual”, esclarece Camila.
Além de mediar as visitas às exposições, Camila faz mestrado, é psicóloga e atende num consultório. E como arranja tempo para tudo isso? “Ah, dá para conciliar bem. Atendo os meus pacientes antes ou depois do trabalho no CCBB”, responde ela, serena.
E é com a mesma tranquilidade que a moça – na companhia da fiel escudeira Pucca, um cão-guia – contou um pouco de sua história de vida à reportagem do Hoje em Dia.
Virada
Camila nasceu com retinose pigmentar – doença degenerativa que atinge a retina – e há dez anos ficou completamente cega. “Os professores foram os primeiros a perceber que havia algo de errado, já que escrevia com os olhos muito próximos à folha, sentava na frente (da sala) e não conseguia acompanhar a turma. Comecei a usar óculos, mas, quando tinha uns nove para dez anos, meu grau já estava muito alto”.
Meta é ‘melhorar o programa de acessibilidade’, diz a moça
Sgundo Camila Araújo, não existiu o fatídico dia em que, de uma hora para outra, parou de enxergar. “Acho que, quando percebi, já não via mais nada”. Diante da nova circunstância, ela poderia ter escolhido o caminho mais fácil e passado o resto da vida na sua Ponte Nova, cidade de menos de 60 mil habitantes, e com a família. Mas havia uma vida a ser descoberta por Camila.
Aos 18 anos, prestou vestibular para várias universidades federais, inclusive mineiras, mas optou pelo curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) de Niterói. “Acho que escolhi o (estado do) Rio porque queria ir para bem longe e também para poder fazer a reabilitação no Instituto Benjamin Constant. Foi lá que aprendi o braile e a usar bengala”, afirma.
Um ano depois de chegar ao Rio, recebeu um convite inusitado: trabalhar numa exposição sobre Hélio Oiticica. “A Virgínia Kastrup, psicóloga da UFRJ, coordenava uma pesquisa sobre acessibilidade em museus e acompanhava esse trabalho. Após fazer uma parceria com o MAM (Museu de Arte Moderna), ela me indicou para trabalhar na exposição do Oiticica. Por ser uma mostra totalmente sensorial, eles queriam contratar pessoas com referências diferentes para passar a sua percepção para o público. Foi a primeira vez que pisei em um museu”, explica.
Missão difícil
O trabalho durou apenas três meses, mas foi o suficiente para despertar o interesse do CCBB, onde está há quase cinco anos. “Muitas pessoas me perguntam como é que faço para saber onde estão os quadros, já que não enxergo. Explico que há um estudo com todos os mediadores. A diferença é que preciso decorar a disposição das coisas que estão naquele espaço. É um trabalho difícil, mas estamos caminhando para melhorar o programa de acessibilidade e tornar o CCBB cada vez um espaço para todos”, ressalta, ao lado de sua Pucca.
“É importante colocar: não se pode pegar no cão-guia quando ele está usando o equipamento de trabalho”, alerta ela. Missão difícil, hein, Camila? A golden retriever é um encanto!
Visitante exalta ousadia de um artista cuja obra remeteria à nossa ‘angústia existencial’
A exposição “Kandinsky: Tudo Começa Num Ponto” veio direto do Rio de Janeiro, onde, juntamente com Brasília, foi visitada por cerca de 680 mil pessoas. Segundo a assessoria de imprensa do CCBB, a mostra tem sido bastante visitada também por aqui.
Ao todo, são 153 obras e objetos de Wassily Kandinsky, conhecido como precursor do abstracionismo. O acervo é diverso e tem como base a coleção do Museu Estatal Russo de São Petersburgo, além de sete museus da Rússia e coleções da Alemanha, Áustria, Inglaterra e França.
A estudante de Direito, Gisele Resende, 20 anos, chama a atenção para o fato de a montagem permitir uma contextualização sobre a época em que o artista viveu. “A mostra tem todo um contexto histórico sobre a Rússia, já que, além de obras de Kandinsky, há trabalhos de outros contemporâneos”.
A servidora pública, Nivea Rezende, 52, por sua vez, destaca as pinturas do artista, que a cativaram. “Kandinsky rompeu com o realismo e mergulhou na arte abstrata. Ele conseguiu fazer de uma arte, em princípio caótica, algo organizado. No fundo, tudo isso me remeteu à nossa eterna angústia existencial”, completa ela, que é mineira, mas vive atualmente em Curitiba.
Fonte: Hoje em Dia