Dar acesso a pessoas com deficiência se transformou numa constante da carreira da produtora. Ela é uma das responsáveis pelo projeto Teatro Acessível, que chegou a Belo Horizonte, no Teatro Oi Futuro Klauss Vianna, e permitiu que um público diferente pudesse frequentar peças de teatrais sem restrições. Nessa entrevista, ela fala sobre sua trajetória, o projeto de acessibilidade e o futuro.
Conte-nos um pouco de onde veio a ideia de desenvolver o projeto de acessibilidade nos espetáculos de teatro.
A ideia surgiu da nossa experiência em produzir o Festival Assim Vivemos, que é um festival internacional de filmes sobre pessoas com deficiência. Foi nesse festival que aparece pela primeira vez e evento cultural o recurso da Audiodescrição no Brasil. Estreamos o festival em 2003, já com todas as acessibilidades, para pessoas surdas e pessoas com deficiência visual. O recurso da Audiodescrição ainda não existia no Brasil, então nós o introduzimos e tivemos a alegria de contar com diversas pessoas cegas na plateia ao longo da semana do festival, e também nos debates, participando totalmente do festival com autonomia.
Depois de alguns anos fazendo esse festival, que é temático, percebemos que a acessibilidade deveria estar em toda e qualquer manifestação artística, cultural e de entretenimento. Começamos a oferecer os serviços de acessibilidade em outros projetos, mas como era difícil convencer as pessoas de que isso era importante, de que a acessibilidade é um direito das pessoas com deficiência, partimos para montar nossos próprios projetos.
Montamos o primeiro portal de entretenimento com acessibilidade, o Blind Tube, onde disponibilizamos filmes brasileiros, curtas-metragens, com um player acessível onde se podia escolher “com Audiodescrição” ou “com Legendas Closed Caption”. Todo o site foi construído visando à acessibilidade também para pessoas com mobilidade reduzida, o que implica em seguir normas internacionais de acessibilidade, que beneficiam a navegação para todas as pessoas.
Depois, oferecemos para a Prefeitura do Rio o projeto de Acessibilidade no Teatro, sugerindo começar pelo Teatro Carlos Gomes, que é municipal, pratica preços populares e tem uma programação bem variada. O acordo com a Prefeitura veio com a parceria com a Petrobras, que patrocinou o projeto durante um ano por meio da Lei Rouanet. Depois de um ano formando uma nova plateia de pessoas com deficiência visual e auditiva, cada vez maior e mais entusiasmada, a Secretaria Municipal de Cultura encampou o projeto e o renovou diretamente, sem buscar patrocínio.
Assim, fomos progredindo nesse projeto exemplar, que rendeu muitos frutos não só na formação da plateia, mas também influenciando outros produtores, gestores públicos e privados a contratarem os serviços de acessibilidade para seus espaços e projetos.
Especificamente no Oi Futuro, tivemos uma peça de teatro infantil patrocinada pela Oi e apresentada no espaço do Flamengo, aqui no Rio de Janeiro, e nela colocamos as acessibilidades. Acredito que vendo o exemplo sendo realizado dentro de casa que a equipe se sensibilizou e priorizou a questão a partir daquele momento.
Vejo que, nesse momento, os gestores que estão atentos às grandes questões internacionais e às demandas da sociedade já compreendem que a acessibilidade é um direito e mais um item indispensável para a construção da cidadania.
Essa iniciativa chegou a Belo Horizonte esse ano, como foi a procura desse público específico?
A procura do público é sempre consistente, porque há uma demanda reprimida por cultura e arte com acessibilidade. Assim como rampas e elevadores para as pessoas que usam cadeira-de-rodas, a acessibilidade na comunicação é fundamental em todas as esferas para as pessoas com deficiências sensoriais – visual e auditiva.
Com o eminente fechamento do Teatro Klauss Vianna, o projeto se interrompe temporariamente. Como estão as previsões e perspectivas para o futuro dele?
Teremos o trabalho interrompido até que o novo espaço seja inaugurado. Mas acredito que nessa ocasião já estrearemos a acessibilidade junto com a programação regular do novo Oi Futuro.
A propósito, vocês planejam levar a acessibilidade a outras cidades? Quais são os planos?
Nossos planos incluem levar projetos como esse para outras cidades, e também capacitar mais pessoas para esse trabalho.
Você tem uma carreira como produtora de cinema e a questão do acesso parece ser algo que perpassa seu trabalho.
Sim, foi o primeiro curta-metragem que produzi, chamado “Cão Guia”, que me levou a conhecer o mais antigo festival temático sobre pessoas com deficiência, que é realizado desde 1995 em Munique, Alemanha. O curta foi escrito e dirigido por Gustavo Acioli, meu marido, que também faz a seleção dos filmes do Festival Assim Vivemos junto comigo. O curta tem como personagem principal uma moça cega, mas o filme fala de amor, de um encontro tumultuado entre duas pessoas que se sentem atraídas uma pela outra. O filme foi selecionado para o festival de Munique, e lá conhecemos essa possibilidade de festival temático e assistimos a filmes absolutamente comoventes e impressionantes.
Trouxemos a ideia do festival e o inscrevemos no edital do CCBB, que abraçou e o patrocinou bienalmente desde então. Apesar de não ter visto a audiodescrição propriamente dita em Munique (lá dois atores faziam apenas a dublagem ao vivo dos filmes, sem descrição da imagem), percebemos que precisaríamos descrever tudo o que aparecia nas imagens dos filmes, nos intervalos dos diálogos, que necessariamente teríamos que dublar. Assim, intuitivamente, começamos. Para preparar o trabalho e fazer a narração ao vivo, convidei a Graciela Pozzobon, atriz que tinha feito o papel da moça cega no curta (com o qual ganhou vários prêmios de melhor atriz em diversos festivais em 1999 e 2000).
Graciela é minha irmã, eu conhecia bem o trabalho dela como atriz e a capacidade de enfrentar um desafio como esse. Foi mágico! Lembro que nós nos emocionamos muito ao presenciar, pela primeira vez, uma pessoa com deficiência visual debatendo os filmes e criticando muito um dos filmes mostrados, argumentando detalhadamente porque não tinha gostado. Detalhe: aquele era um filme polonês, chamado “Cenas da vida de um homem”, que não tinha diálogos. Então o filme era todo “complementado” pela audiodescrição.
Paralelamente à produção do festival, que seguiu com uma frequência bienal, continuei produzindo filmes, mais três curtas e dois longas, um dos quais está nesse momento em finalização. Produzi também três peças de teatro e várias mostras de cinema. Os outros projetos têm temas variados. O festival nos abriu os olhos para a acessibilidade e desde então pensamos nisso em todos os projetos que realizamos. Assim como a sociedade, os gestores e a imprensa levam um tempo para perceber que é preciso haver uma mobilização massiva para que a acessibilidade se torne universal, nós também levamos um tempo para chegar a essa consciência de que não se pode pensar em um projeto sem prever a acessibilidade em todas as suas manifestações. Cada vez mais, buscamos expandir ao máximo a acessibilidade nos projetos que nos dizem respeito. Há limites de ordem econômica e política, mas devemos empurrá-los para que a oferta de produtos acessíveis seja cada vez maior.
Nosso próximo filme, também escrito e dirigido por Gustavo Acioli, é uma comédia que se passa em Brasília, em um futuro próximo, e as personagens principais são todas mulheres. Dira Paes faz uma Senadora da República e Stella Miranda faz uma ministra. Elas aprontam muito, mas a situação, entre aspas, política, fica mais mirabolante quando suas assessoras começam a bolar seus próprios esquemas. É um filme que vai surpreender, porque tem uma originalidade temática e dramatúrgica que o cinema brasileiro ainda não viu.
Mais uma vez, falando em futuro, como estão os planos para o “Assim Vivemos”? E produções de cinema, algo próximo?
O festival deve ter sua sétima edição em 2015, com estreia no CCBB do Rio de Janeiro, seguindo para Brasília e São Paulo, como é a sua tradição. Depois, busco patrocínio para fazer a itinerância dessa edição para outras cidades. Já o levamos para Belo Horizonte em 2010, por meio de patrocínio da Petrobras, e também para Porto Alegre, que o recebeu novamente em 2012. Mas queremos expandir muito mais, porque o festival é um projeto transformador, modifica a vida das pessoas, abre a cabeça, quebra com os preconceitos, que estão enraizados na falta de informação. Temos equipe e capacidade de viajar por todo o Brasil com o festival. Só precisamos de apoios e patrocínio para levar a estrutura toda, sempre com as acessibilidades para todos.
Temos também a intenção de editar os filmes em DVD para que os filmes tenham um alcance maior. Apenas em 2007 conseguimos incluir na produção do festival a edição de um DVD para distribuição gratuita em instituições, graças a uma complementação de patrocínio da Petrobras. Muita gente nos pede os filmes, mas só temos os direitos de exibição no âmbito do festival. Por isso seria muito importante conseguir apoio para editar os DVDs, que seriam destinados em parte para distribuição em instituições, escolas e universidades, e em parte para venda online.
Como essa experiência de dar acesso a públicos que ficavam privados de algumas expressões artísticas ajuda na formação de novas plateias? Desde que vocês tomaram essa iniciativa, há uma interlocução com alguma esfera pública ou vocês seguem “sozinhos” nesse projeto?
Essa experiência faz surgir uma plateia que estava alijada da vida cultural no Brasil. São pessoas que representam a sociedade brasileira em sua diversidade, pessoas de todas as classes sociais. O público que vai espontaneamente ao teatro é de pessoas incluídas, que trabalham, pagam seus impostos (e é óbvio, mas não custa repetir), são cidadãos que têm direito a essa autonomia que a acessibilidade permite.
Com a esfera pública, há uma interlocução ainda muito superficial, sempre solicitada, insistida e pressionada por nós. Fazemos de tudo para informar, mostrar os resultados, dar a conhecer a importância da inclusão e dos recursos da acessibilidade, mas ainda é um diálogo muito batalhado. Muitos projetos já poderiam ter sido implementados ou ampliados, mas ficam em compasso de espera enquanto a consciência de sua necessidade não for percebida por poderes públicos e privados.
Fonte: Caderno Magazine