Todo sacrifício vale a pena para se alcançar o topo de uma montanha. Horas de caminhadas nas trilhas e esforço na escalada são compensadas com sensações impossíveis de sentir ao nível do mar. Lá do alto, o vento gela a espinha como uma bênção. Parece que o sol nasce e se põe para se exibir – uma gentileza da natureza para a apreciação de poucos. Acima das nuvens, é impossível não se sentir uma espécie de herói ou dono do mundo. Todos os problemas tornam-se pequenos diante da paisagem imensa que se descortina diante dos nossos olhos.
Em junho de 2015, a contadora Juliana Tozzi, de 33 anos, grávida de um mês, começou a perder os movimentos das pernas, ter dificuldade em falar e até de se manter equilibrada – sintomas de uma rara síndrome degenerativa do cerebelo.
Mas foram as emoções vividas ao lado do marido, o engenheiro Guilherme Simões, de 30 anos, que fizeram com que ela não se deixasse vencer pelo infortúnio. Desde janeiro de 2006, o casal de São José dos Campos, a 95 km da capital, fez mais de 30 trilhas, incluindo a travessia da Serra Fina, considerada uma das mais difíceis do País. Juntos, conquistaram mais de 30 montanhas. As últimas delas foram o Pico das Agulhas Negras, a Pedra do Altar e a Pedra do Couto, no Parque Nacional do Itatiaia, no Rio de Janeiro, quatro meses antes dos primeiros sintomas que transformaram a vida de Juliana.
Entre tantos medos diante da doença limitadora encarada durante uma gestação, a incerteza de poder voltar aos pontos mais altos da Serra da Mantiqueira e fazer trilhas foi o que manteve Juliana sonhando. “A gente se esforça, mas quando conquista o objetivo se sente leve. Eu queria sentir aquilo de novo”, conta Juliana, que sempre organizava as viagens do grupo dos amigos.
Enquanto médicos se desdobravam para descobrir o que desencadeou a síndrome e o bebê crescia na barriga de Juliana, o marido, que tem uma empresa de construção civil, mudou a rotina para acompanhá-la no tratamento e usava as horas vagas matutando em como levar a garota extrovertida, que lhe roubou um beijo no ônibus da faculdade dez anos antes, de novo ao topo, mesmo com ela numa cadeira de rodas.
“Eu prometi a Ju que tudo o que ela quisesse fazer, nós faríamos com determinação e adaptação”, comenta Simões. Ele pesquisou e não encontrou nada no Brasil que permitisse que a mulher voltasse a praticar o montanhismo. Apenas na Europa, localizou um modelo de cadeira de trilha para pessoas com mobilidade reduzida. O engenheiro civil não teve dúvida. Para cumprir sua promessa, decidiu ele próprio criar uma modelo para que Juliana pudesse voltar a se sentir leve no alto da montanha e a ver os problemas que enfrentavam de outra perspectiva.
Juliette na Pedra das Flores – Serra do Lopo em Extrema – MG
Simões fez uns desenhos e chegou a entrar em contato com um fabricante de charrete para ajudá-lo na missão. Não deu certo. Voltou a procurar um novo parceiro para seu projeto e, por essas coincidências do destino, encontrou, em outubro do ano passado, em São José dos Campos, Hidel Castro Arantes, de 35 anos, que desde 2009 fabrica handbikes para pessoas com mobilidade reduzida. Arantes começou o negócio também por uma motivação pessoal: atender um pedido de um sobrinho, hoje com 21 anos, que perdeu os movimentos da perna após ser atropelado aos 8 anos.
Quando Simões sugeriu o projeto da cadeira adaptada, Arantes não sabia nem por onde começar a fazer, nem o custo do equipamento. O empresário propôs então que os dois se encontrassem todos os dias após o expediente para desenvolvê-lo juntos. Nada foi cobrado. “Se a gente consegue sonhar, a gente consegue fazer”, diz Arantes.
O projeto da cadeira ficou suspenso com a chegada, em dezembro, de Benjamim, o filho do casal que nasceu em dezembro de 7 meses. Com o parto, Juliana finalmente descobriu que a síndrome degenerativa foi causada por um câncer nos linfonodos. Começou imediatamente a quimioterapia em um hospital em São Paulo e seguiu sua a rotina de fonoaudiologia, terapia ocupacional, fisioterapia, equoterapia e psicologia. A luta é para ganhar autonomia em tarefas básicas, como voltar a comer sozinha, e deveres sublimes para uma mãe, como dar banho, trocar uma fralda e acalentar o seu bebê. É a mãe de Juliana, Irene Maria Tozzi, de 63 anos, a responsável pelo cuidado de Benjamim. A mãe participa observando.
O sonho de voltar à montanha, no entanto, não adormeceu. No fim de janeiro deste ano, para comemorar o aniversário de Juliana, o casal tentou alcançar a Pedra da Macela, em Cunha, a 1.840 metros de altitude. Com ajuda de amigos, ela teve a cadeira de rodas comum puxada por cordas pela estrada de terra. Na parte mais difícil da trilha, a contadora foi carregada no colo pelo marido e por um amigo. Era a hora de colocar o projeto da cadeira em prática.
Foram três meses de muito trabalho entre o desenho do projeto e a execução até nascer Juliete, como foi batizada por Juliana a cadeira de apenas uma roda projetada para pessoas com mobilidade reduzida percorrer trilhas estreitas e subir pedras de difícil acesso. O equipamento, totalmente desmontável, tem duas hastes na frente e duas atrás para ser puxada e empurrada montanha acima. Para dar segurança à Juliana, que devido à doença tem pouco equilíbrio, o assento tem um design personalizado para dar sustentação a ela. Para fabricá-la foram gastos cerca R$ 1.320 apenas em peças, sem contar a mão de obra. O valor estimado de mercado é de R$ 3.250.
No último dia 12 de junho, Dia dos Namorados, Simões levou Juliana de volta ao Parque Nacional de Itatiaia para fazer o primeiro teste de Juliete. Com os termômetros marcando 1°C negativo, Juliana subiu o maciço das Prateleiras em busca da leveza e da própria superação. A doença deixou as palavras mais difíceis de sair, mas não tirou a emoção daquele momento. Marido e mulher choraram abraçados no alto da montanha, como no final de filme romântico com duas histórias de amor: a devoção de Simões por Juliana, e a paixão do casal pelas montanhas. “Choramos muito. Eu achei que pudesse sentir tudo isso de novo”, diz Juliana.
A cena foi gravada pelo amigo Samuel Oscar, cinegrafista especialista em montanha. “Voltar para a montanha com a Ju foi emocionante. Quem a viu forte, organizando os grupos e a vê nessa situação, é uma dor tremenda. Por outro lado, é uma satisfação ver o sorriso dela em estar de novo na montanha. Foi mágico”, diz Oscar.
A ideia agora é que Juliete comece a levar qualquer pessoa com mobilidade reduzida pelas trilhas e montanhas. Simões criou no Facebook a página Montanha Para Todos para divulgar o montanhismo adaptado. “O nosso sonho é disponibilizar as cadeiras adaptadas nos parques nacionais”, adianta Simões. Por enquanto, a venda comercial das Julietes não está programada.
“A montanha nos ensina a superar todos os desafios, a ser persistente, nos dá autoconfiança para vencer as dificuldades”, diz Simões. Que o diga Juliana, que, junto com Juliete, redobrou sua confiança. Depois de irem ao Parque Nacional de Itatiaia, estiveram na Serra do Lopo, em Extrema, em Minas Gerais, no sábado (18). A contadora agora sonha em 2017 percorrer a Carretera Austral, na Patagônia Chilena. Quer também começar a dar palestras e escrever um livro sobre como superar montanhas, as literais e a metafóricas. “Não adianta chorar. É preciso sorrir sempre”, ensina Juliana.
Fonte: Estadão