O que os olhos não vêem o coração não sente, o pior cego é aquele que não quer ver, ver para crer. Se os idiomas estão coalhados de expressões como essas, é porque a visão nos parece algo concreto, indubitável, o mais imediato dos cinco sentidos. Nos servimos dos olhos o tempo todo. Os olhos são a janela da alma. Será?
“Janela da Alma” é um filme sobre o sentido da visão. Ou, melhor, sobre os sentidos da visão.
O documentário é o longa de João Jardim, 37, co-dirigido por Walter Carvalho, 53, um dos mais destacados diretores de fotografia do cinema nacional. Unindo-os, além do elo da imagem, algo que justamente os poderia ter afastado dela: muitos graus de miopia.
“A idéia surgiu de uma vivência muito pessoal minha -eu achava que o fato de eu ter uma miopia muito grande tinha influenciado na minha personalidade e até na minha vida”, conta Jardim.
Para o cineasta, era intrigante que houvesse livros sobre a relatividade da visão como instrumento de apreensão do mundo, mas que não houvesse um registro audiovisual do assunto.
“Achava superinteressante essa questão do ver ou não ver. Tudo depende do que a gente já viu antes, que determina a maneira como a gente interpreta o que está vendo. Eu achava muito estranho não se falar disso em cinema ou televisão, achava que dava para fazer alguma coisa emocionante.”
O filme é composto de 19 depoimentos de pessoas de vista “curta” -de um total de 50, coletados em duas etapas, que renderam à dupla mais de 30 horas de filme, as quais consumiram 450 horas de edição. Os diretores não são personagens. Seu depoimento, diz Jardim, é o próprio filme.
A imagem-matriz do documentário são as cenas noturnas de um passeio de carro filmado por uma câmera “míope”, que entram intercaladas às falas. Foi numa situação parecida que Jardim diz ter tido o “insight” para a fita.
A escolha do parceiro -desde que teve a idéia, há cinco anos, Jardim nunca quis realizar o filme sozinho- veio de modo natural.
“Eu estava com ele [Walter Carvalho] em Búzios, passando o Carnaval, numa praia que tem ondas fortes, e o vi dentro da água de óculos, furando as ondas. Normalmente, as pessoas tiram os óculos. Eu pensei: “Esse cara tem uma história para contar”.”
Que não se pense, porém, que o filme se resuma à dificuldade de viver no mundo sem ter a visão perfeita. “Janela da Alma” se choca contra esse padrão. “Acabou evoluindo para um ensaio sobre o olhar”, diz Walter Carvalho.
“Temos pessoas que, por alguma razão, enxergam pouco, ou “nada”, entre aspas. Quando digo “nada”, é porque quem não tem esse sistema perfeito também pode ver, porque não se vê só com os olhos”, completa. “Tem gente que, embora tenha seu espelho quebrado, também continua a enxergar a seu modo.”
É o caso do fotógrafo esloveno Eugen Bavcar, que é cego, ou do músico brasileiro Hermeto Pascoal, que sempre enxergou muito pouco, ou do vereador mineiro Arnaldo Godoy, que perdeu a visão no fim da adolescência.
“Eu pedi a Deus para Deus me deixar um tempo cego, cego aparente. Porque olhando é tanta coisa ruim que a gente vê, que atrapalha a visão certa, a visão das coisas que a gente quer fazer na vida”, diz Hermeto, a certa altura.
O trio é responsável por alguns dos trechos mais tocantes do filme, fazendo pensar sobre como pode ser pobre nossa visão do mundo se feita só com os olhos.
Os diretores destacam ainda as falas do escritor português José Saramago e do cineasta alemão Wim Wenders. É Saramago, autor de “Ensaio sobre a Cegueira” e “A Caverna”, quem diz no filme que nunca estivemos tão próximos da alegoria da caverna de Platão do que hoje: somos bombardeados por imagens de todo tipo, sombras que cremos reais
http://www.youtube.com/watch?v=56Lsyci_gwg
Fonte: Folha de São Paulo