Tem diretor brasileiro que diz que gente rica não rende boas histórias, mas os filmes do iraniano Asghar Farhadi estão aí, ganhando espaço em festivais e premiações, para desmentir.

Os dois mais recentes, Procurando Elly e A Separação, não tratam de “gente rica” como estereótipo – a madame com o champanhe – mas de pessoas de classe alta, com seus anseios particulares, do melhor ensino para os filhos a viagens ao exterior. Que tiram dias para ir à praia, como os personagens de Procurando Elly, ou preocupam-se com seus livros numa mudança, como a protagonista de A Separação.

O que gera interesse nesses filmes de Farhadi é o choque da classe alta – em teoria, secularista e modernizada – com os costumes fundamentalistas da sociedade iraniana. Um choque que frequentemente expõe não só o conhecido atraso das leis do país como também uma hipocrisia de quem, novamente teoricamente, seria o lado mais progressista dessa equação, os “esclarecidos”.

A separação que dá nome ao filme já começa praticamente consumada. Simin (Leila Hatami) e Nader (Peyman Moadi) estão diante de um juiz para acertar o divórcio; ela quer morar fora do Irã e levar sua filha, enquanto o marido insiste em ficar em Teerã para cuidar de seu pai idoso, que tem Alzheimer. O juiz nega o divórcio, pois não há, no seu entender, um fato suficientemente grave para justificar a separação.

Contar o que acontece depois – envolvendo uma empregada religiosa, a filha do casal e uma gravidez de risco – tiraria um pouco do peso do filme. Vale dizer apenas que a trama de A Separação retorna constantemente para a mesa de um juiz. Se em Procurando Elly a tensão crescente vem do desaparecimento de Elly, aqui o sufoco surge da repetição kafkiana de situações de tribunal.

A contratação de uma cuidadora foi uma opção, pois o pai com Alzheimer não pode ficar sozinho

A contratação de uma cuidadora foi uma opção, pois o pai com Alzheimer não pode ficar sozinho

Quando A Separação ganhou o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, o ministro das relações exteriores do Irã alertou para o perigo de “dar prêmios valiosos a filmes cujo tema central é a pobreza e as dificuldades de um povo”. São dois equívocos: primeiro, entender que a pobreza é o foco (Farhadi expõe mais desvios de caráter na classe alta do que na baixa); depois, confundir exploração das “dificuldades de um povo” com a análise das transformações sociais do Irã.

Transformações essas que, para nós, podem parecer trivialidades, como o fato de Simin e Nader mandarem a filha para o quarto ou a cozinha o tempo todo, enquanto discutem, e ela não atender (Farhadi enquadra a cena para mostrar que a menina permanece no ambiente). É provável que A Separação, ao contrário do grosso da produção iraniana atual, tenha sido muito bem recebido no Ocidente porque trata de uma história universal – o marido que se vê sozinho e, por orgulho, não reconhece que precisa da mulher -, a crise do patriarcado não respeita fronteiras, mas obviamente no Irã isso tem uma dimensão distinta.

No fim, o choque não é tanto entre estratos, mas entre dois momentos: o país que acreditava nos dogmas, numa predestinação social, e o país que hoje convive com a inevitabilidade da mudança, em que a cidadania se conquista diariamente. Cenas como a reconstituição do crime causam perplexidade porque são a materialização desse choque: a reconstituição em si se apoia numa “modernidade”, a da análise objetiva da cena do crime, mas as mentiras escondidas pelos personagens – mentiras profundas, ancestrais – impedem qualquer objetividade.

Não por acaso, as mulheres de A Separação, quando choram, aparecem em cena já com a lágrima escorrida até o queixo – é um choro não por uma circunstância, mas por um estado estabelecido de coisas, um choro passado. Farhadi só filma um lágrima por inteiro, presente, quando é a adolescente que a chora. Tragicamente é sobre ela que recai a responsabilidade de impedir que o Irã permaneça nesse limbo aflitivo.

Fonte: Omelete

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