F123, uma tecnologia social para sinalizar o caminho da inserção dos deficientes visuais
“Andar no escuro é assustador –no começo”, diz Fernando Botelho, 42, que perdeu totalmente a visão ainda na adolescência. Mas a deficiência não o impediu de ter uma trajetória ascendente.
Formado em sociologia na Universidade Cornell (EUA) e com mestrado em relações internacionais na Universidade de Georgetown (EUA), ele foi consultor da Unctad, agência das Nações Unidas em Genebra, e é fluente em inglês e espanhol.
Seu passaporte também impressiona –já morou nos EUA, na Argentina, no Chile, na Espanha, na França, nas ilhas Cayman e na Suíça.
Até se estabelecer em Curitiba, há seis anos, com Flávia de Paula, sua mulher, nunca tinha vivido além de quatro anos em uma cidade.
Seu problema de visão começou aos quatro anos, quando a mãe percebeu que ele tinha dificuldades para encontrar os brinquedos, mas o diagnóstico de retinose pigmentar só foi dado aos nove.
Para reverter o quadro da doença, sua família recorreu até a tratamentos experimentais no exterior. A cura não veio, mas, com o apoio dos pais, Fernando teve acesso a equipamentos de ponta que amenizaram os danos causados pela falta de visão.
COMPETITIVO
Foi então que decidiu estudar sozinho nos EUA. Queria “ser competitivo em uma área que não tivesse a ver com cegueira para ser reconhecido como profissional, não como cego profissional”.
Estudou pesado, ficou popular, foi disputado para dançar no baile de formatura e ainda hoje tem contato com os amigos da universidade. Tudo isso para mostrar que não era “o ceguinho”.
Essa briga contra o estereótipo do deficiente fez ele se expor a todo tipo de situação e lhe rendeu muitos casos saborosos e lembranças difíceis. Em 2001, quando morava em Nova York, estava só na rua, perto do World Trade Center, no dia 11 de setembro mais sombrio da história.
Sua descrição do atentado, porém, é diferente daquela a que estamos acostumados: ele diz que sentia pisar em cinzas e em papéis nas ruas, que havia um silêncio incomum e um cheiro fortíssimo de queimado.
MEDOS
Fernando é obstinado naquilo que traça como meta. Teimoso e sonhador, parece não ter medo de nada. Aliás, de quase nada: nos anos em que viveu no exterior, tudo o que mais temia era ter de voltar a morar no Brasil.
“Eu sabia que tinha potencial, mas que não teria tantas chances aqui, na época. Voltar para ficar revelando filme em quarto escuro ou fazendo vassoura?”
O medo se transformou em oportunidade quando o casal resolveu encarar nova mudança em 2007.
Fernando concluiu que sua atividade na Suíça não o recompensava mais emocionalmente e que era hora de vir para o Brasil. “Eu tinha a percepção de que os cegos poderiam se desenvolver se tivessem tecnologia. O problema era o preço da tecnologia.”
Daí veio o F123, um sistema voltado para os deficientes visuais que utiliza software livre, custa menos do que os oferecidos pela concorrência e ainda possibilita aos programadores a chance de melhorar o produto.
“Vi que, se me concentrasse na área da cegueira, poderia fazer a diferença. E isso por minha experiência anterior, minha formação. Descobri que não tinha mais vergonha, que não estava diminuído por trabalhar nessa área.”
FASE DOS POR QUÊS
Com o nascimento do projeto, ele atraiu para o campo da acessibilidade a mulher, com quem divide há 14 anos variadas experiências nas andanças pelo mundo e hoje, também, o escritório: ele é a parte desenvolvedora, idealizadora. Ela, dentista, atualmente conduz toda a parte administrativa do negócio.
Pelo que ambos dizem, não é ruim conviver por tanto tempo: “A gente não briga e aprendeu a confiar um no outro”, afirma Flávia.
A irmã, Ana Botelho, destaca entre as características do empreendedor “sua incansável vontade de aprender mais em tudo e a incrível teimosia de não desistir frente a uma negação ou obstáculo”. O pai, José Botelho, costuma dizer que o filho “não saiu da fase dos por quês”.
Os amigos o definem como alguém especial. “Ele é altamente empreendedor e, ao mesmo tempo, dotado de consciência social”, afirma Lukas Stückling, com quem trabalhou na Suíça e que hoje é conselheiro do projeto F123.
Fernando conta que sempre teve duas obsessões: provar ao mundo do que é capaz e ser útil a esse mesmo mundo. Porque andar no escuro, afinal de contas, é só uma forma diferente de andar.
Fonte: Folha de S.Paulo
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