A cegueira pode funcionar como uma forma de enxergar a natureza humana muito além das aparências civilizadas. Em Ensaio sobre a Cegueira, filme de Fernando Meirelles, essa alegoria ganha, digamos, “cores” dramáticas.
Bastante fiel ao livro homônimo de José Saramago, Ensaio se passa em nenhum lugar, com pessoas sem nome. Não se trata, portanto, de uma história, mas de uma reflexão a respeito do que realmente somos, em essência, e não do que pensamos que somos – e isso inclui um nome e um endereço, espécie de rótulos com os quais nos reconhecemos e somos reconhecidos. No mundo da cegueira coletiva, esses rótulos são irrelevantes.
No entanto, não são apenas as referências mínimas que estão ausentes. O desmoronamento moral, de um dia para o outro e em ritmo irresistível, traduz a confusão dos conceitos em um tempo no qual todas as informações têm o mesmo peso. A cegueira de Ensaio é branca – é o brilho da luz que cega, é o excesso de informações desordenadas que confunde, em vez de esclarecer, e não deixa ver como o mundo, de fato, é. O resultado disso é o caos.
Os “doentes”, isto é, as vítimas da epidemia de cegueira, são então obrigados a reaprender a viver em sociedade, a refazer o contrato, a tatear para reencontrar os valores caros à humanidade. Confinados num sanatório, acabam submetidos a um homem armado, que se proclama “rei”, e a um cego de nascença, que ironicamente funciona como um guia para o déspota.
Todo esse drama é testemunhado por uma mulher que, sem nenhuma explicação aparente, não é afetada pela epidemia. Em atuação excelente de Julianne Moore, ela procura mediar o reencontro dos cegos com alguma forma de civilização, mas a força da natureza aparenta ser inconciliável, como um pesadelo hobbesiano. A personagem que representa a “civilização”, por ser a única a enxergar, não suporta o fardo de sua missão e sucumbe ela mesma à barbárie. Há certas coisas que é melhor não ver.
A viagem ao âmago do inferno que é viver a vida sem os freios morais, no entanto, termina com uma nota de otimismo, que soa ingênuo diante do espetáculo de degradação proporcionado pela multidão de cegos. Conclui-se que o não-ver, isto é, a renúncia aos padrões estéticos, é o que efetivamente aproxima as pessoas, derrubando barreiras sociais e revelando-lhes a possibilidade real do amor.
Ensaio sobre a Cegueira. Diretor: Fernando Meirelles (O Jardineiro Fiel e Cidade de Deus). Com Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga, Gael García Bernal e Danny Glover, no elenco. Estréia em 12 de setembro.
Fonte: Estadão
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