Consumidores Esquecidos. É preciso saber se comunicar de forma adequada.
Eles somam cerca de 46 milhões de pessoas, correspondente a 24% da população brasileira, de acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): as pessoas com deficiência formam um público de tamanho significativo que pode estar sendo deixado de lado – e até mesmo ignorado – pelas estratégias de comunicação de sua empresa.
Sim: comunicar-se diretamente e de forma eficaz com pessoas com deficiência ainda não está entre as prioridades da maioria das empresas brasileiras. Preconceitos e desconhecimentos fazem com que quase um quarto dos brasileiros fique de fora dos processos de comunicação corporativa e deixem de ser percebidos por empresas como parceiros, colaboradores, consumidores e, principalmente, cidadãos que buscam e têm direito à informação – um direito previsto na Constituição Federal brasileira para todos os brasileiros, sem distinção.
Presidente da ONG Vez da Voz, que desenvolve ações de mídia inclusiva em parceria com diversas empresas, como a Folha de S. Paulo e o UOL, Claudia Cotes acredita que é possível levar para as empresas um novo modelo de comunicação que seja acessível a todas as pessoas. Os recursos são amplos e envolvem material em áudio e em braile, softwares de reconhecimento de voz, leitores de telas (softwares que reproduzem em áudio, ou seja, leem o que está escrito na tela), tradutores de Libras (Linguagem Brasileira de Sinais) e vídeos inclusivos que contenham audiodescrição de cenas (narradas por um locutor), legendas e tradutor de Libras mostrado em tamanho adequado.
“Este modelo de comunicação inclusiva pode ser utilizado por toda a sociedade, em qualquer setor. A inovação depende de uma equipe de profissionais que queiram mudar e ampliar horizontes. O ganho para a empresa é o de pensar de uma forma inclusiva, mais ampla, e o de comunicar-se de uma forma mais eficaz, sem preconceito.”
Jornalista e presidente da Usina da Inclusão, startup de social commerce inclusivo, que conta com assessoria de comunicação e de imprensa especializada, Lincoln Tavares acredita que as empresas devem evitar pensar na comunicação inclusiva como um conceito isolado ou como estratégia para atingir determinado segmento.
“É preciso estruturar uma cultura inclusiva em todos os segmentos da empresa, inclusive (e não somente) na comunicação corporativa. Queremos nos comunicar com quem? Se a resposta é “com todas as pessoas”, então devemos pensar quais ferramentas tornam essa comunicação possível. Na comunicação com o público externo, o raciocínio é o mesmo”, diz Tavares.
Recursos estratégicos
Desenvolver uma estratégia de comunicação e marketing que alcance a todos exige atenção a detalhes que comumente passam despercebidos, tanto em empresas de segmentos diversos, quanto em agências de comunicação. Dentre os cuidados para que a informação esteja realmente ao alcance de todos, Tavares cita desde a escolha dos formatos de arquivos até a elaboração de produtos específicos.
“Por exemplo, ao elaborar uma newsletter, a empresa pode (na verdade deve) saber que determinadas extensões de arquivos (JPG e PDF, por exemplo) não são reconhecidas por softwares leitores de tela, utilizados por pessoas com deficiência visual. Qual seria, então, uma solução razoável? Preparar um equivalente textual em TXT ou mesmo em Word. Ou, então, se for utilizar imagens em meio ao material produzido, deve-se descrevê-las (de maneira objetiva) por meio de legendas.”
A impressão em braile, importante para o acesso das pessoas com deficiência visual à informação, também é recomendada. No entanto, o jornalista frisa que nem todas as pessoas com deficiência visual dominam esse tipo de escrita.
“A produção de podcasts também pode ser uma boa saída. No caso da produção de vídeos, ainda há a audiodescrição, uma técnica que descreve o que está acontecendo durante a cena sem conflitar com os diálogos. Para as pessoas com deficiência auditiva, é recomendável a utilização de legendas e intérprete de Libras, não somente para os vídeos, mas também como material complementar aos textos. No caso de blogs, hotsites e outras ferramentas relacionadas às mídias sociais, também devem ser utilizados recursos como os botões de aumento e contraste da fonte e programação de HTML que facilite e torne intuitiva a navegação”, explica.
Acessibilidade na rede
Grande aliada na inclusão das pessoas com deficiência dentro dos processos de comunicação, a internet pode ser utilizada de forma mais eficaz pelas empresas que buscam criar novos paradigmas na construção de uma sociedade mais igualitária no acesso à informação e nas oportunidades de trabalho e de consumo.
Para isso, além dos recursos citados por Tavares, é necessário, por exemplo, que o site facilite a utilização de leitores de tela, que o seu código seja organizado de modo a permitir a total navegação por meio do teclado (sem o uso do mouse), de forma simples, que possibilite o uso de atalhos para o acesso a diferentes partes do site e que ofereça transcrição em áudio e vídeo do conteúdo.
“De acordo com Tim Berners-Lee, criador da internet e hoje líder do W3C (consórcio internacional com objetivo de desenvolver padrões para a web), a web tem de estar disponível para todas as pessoas, independentemente do hardware que usam, software, idioma, cultura, localização geográfica ou capacidade física e mental”, afirma Rodrigo Leme, gerente de projetos da Espiral Interativa, agência digital de São Paulo que trabalha com consultoria em acessibilidade para a web e que tem clientes como a Fundação Dorina Nowill, uma das mais reconhecidas entidades voltadas à inclusão das pessoas com deficiência visual do Brasil.
“Tenho esperança de que daqui a alguns anos seja natural construirmos sites e/ou outros meios de divulgação de informação e serviços acessíveis. Hoje, o principal é termos consciência da importância de seguirmos algumas regras e tomarmos alguns cuidados extras na concepção de um site. Sites acessíveis têm cuidados visuais, estruturais, no conteúdo, na semântica e também na usabilidade. A informação deve ser pensada para atender a todos.”
Diferenças que promovem a igualdade
Consultora da Talento Incluir, empresa que trabalha com a inclusão de pessoas com deficiências no mercado de trabalho, Tabata Contri esclarece que as empresas precisam ter sensibilidade para entender as diferentes necessidades de seus funcionários e clientes, promovendo a autonomia e a profissionalização da relação entre empresa e funcionários com deficiência.
“A pessoa com deficiência tem de receber e entender 100% das informações que são passadas para ela e, para isso, é preciso trabalhar a cultura da empresa como um todo. A pessoa com deficiência não pode ser vista como um coitadinho, mas como uma pessoa que pode contribuir com a empresa e que deve receber as informações necessárias para isso.”
Cadeirante há 11 anos, Tabata defende que as pessoas com deficiência devem ser vistas pelas empresas como um público a ser alcançado, não de uma forma assistencialista, mas por meio de ações efetivas que promovam sua inclusão nas mesmas esferas que as demais pessoas: consumo, trabalho, educação, lazer, entretenimento, cidadania – e, para ela, a comunicação tem um papel primordial nesse processo.
“Mais do que promover a acessibilidade, a comunicação pode provocar uma mudança na cultura das empresas e da sociedade”, afirma, lembrando que cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida também precisam ser contempladas com ações de comunicação inclusiva, como correto posicionamento de avisos e jornais murais em locais acessíveis, com conforto para quem precisa de apoio físico e em uma altura compatível com a leitura a partir de cadeiras de rodas.
Apesar do longo caminho a se percorrer para que a comunicação inclusiva esteja no dia a dia de todas as pessoas, a consultora analisa o atual momento com otimismo: “A publicidade e as empresas começaram a entender que esse é um nicho de mercado interessante e que as pessoas com deficiências são formadoras de opinião e exercem influência importante na sociedade”.
Rentabilidade humana e empresarial
Na Johnson & Johnson, o processo de comunicação inclusiva teve início em 2006, com a implantação do programa de inclusão de pessoas com deficiência entre os funcionários. A empresa conta com 20 pessoas com deficiência auditiva beneficiadas pelo programa, que envolve tradutores de Libras em reuniões e em capacitações.
“Uma das ações que implantamos foi a capacitação correta dos deficientes auditivos – em julho de 2011, fizemos o primeiro treinamento. A partir daí, passamos a desenvolver material de treinamento específico para esse grupo”, afirma Rubia Fernandes, da área de educação e treinamento da Johnson & Johnson, em São José dos Campos.
“Para a empresa, o benefício é ter todos os profissionais motivados, com a mesma base de conhecimento para executar sua função corretamente. Para os funcionários, é importante ter uma base única de desenvolvimento, respeitando as diferenças.”
Além de promover a cidadania, de desmitificar as diferenças e de promover mudanças importantes na vida de pessoas com e sem deficiência, a comunicação inclusiva pode ser uma aliada estratégica para o incremento do desempenho dos funcionários e da rentabilidade empresarial.
“A comunicação promove um rendimento mais individualizado e dentro dos padrões dos não deficientes, promovendo mais autonomia para a execução das tarefas empresariais. Com isso, a empresa e os funcionários ganham tempo, pois as pessoas com deficiência conseguem resolver suas tarefas com independência e sem o auxílio de outras pessoas a todo o momento. A empresa ganha com um desempenho melhor de seus funcionários e em sua rentabilidade empresarial”, afirma Maria Gorete Cortez de Assis, integrante do Conselho Estadual para Assuntos da Pessoa com Deficiência, de São Paulo, e coordenadora educacional do Próvisão, hospital e centro de reabilitação localizado em São José dos Campos, que conta com um núcleo de empregabilidade para pessoas com deficiência visual.
Pedagoga especializada em deficiência visual, Gorete destaca o papel da comunicação inclusiva nas rotinas empresariais, mesmo quando as informações possam parecer simples ou corriqueiras. “As pessoas que enxergam interagem o tempo todo com tudo que está ao seu redor, como quadros de comunicação e placas. O cego fica à mercê dessa comunicação do dia a dia, que tem uma dinâmica rápida, e precisa de uma comunicação inclusiva, que se realize de forma diária, para que ele não receba informações truncadas. Mais importante até do que a acessibilidade física e os materiais assistivos e adaptados é a acessibilidade dos seres humanos. Somente quando as pessoas passarem a realmente compreender as diferenças será possível transformar a realidade.”
Feira apresenta tecnologias inclusivas às empresas e aos consumidores
Uma oportunidade de conhecer novas práticas voltadas à acessibilidade de pessoas com deficiência chegará ao Vale do Paraíba no segundo semestre de 2012, com a realização da primeira Feira e Congresso de Acessibilidade, Inclusão Social e Tecnologia Assistiva da região. Realizada pela Mastran Business Fairs, o evento, que reunirá fabricantes de equipamentos e tecnologias para pessoas com deficiências, discutirá leis e melhorias na qualidade de vida e abordará alguns temas, como a acessibilidade, a tecnologia assistiva, a inclusão social e a geração de empregos.
Inclusão de funcionários com deficiência deve ir além da legislação
Cumprir a legislação. Essa é a meta de muitas empresas quando se trata da inclusão de pessoas com deficiência em seus quadros de trabalho. Mas, para especialistas, o setor empresarial brasileiro está muito longe de pôr em prática o que determina a lei. E mais: cumprir à risca o que diz a lei brasileira é insuficiente para garantir uma inclusão efetiva, que respeite as necessidades e valorize as capacidades de pessoas com deficiência no ambiente de trabalho.
Considerada um marco na criação de postos de trabalho para pessoas com deficiência, a Lei 8.213, sancionada em 1991 e conhecida como Lei de Cotas, estabelece que empresas com mais de 100 funcionários devem reservar de 2% a 5% das vagas de trabalho para pessoas com deficiência.
Para Tabata Contri, consultora da Talento Incluir, empresa de São Paulo que assessora profissionais com deficiência para a inclusão e recolocação no mercado de trabalho, a legislação brasileira está começando a reverter esse quadro de exclusão e, como exemplo, cita dados do Ministério do Trabalho e Emprego, que apontam que, em 2001, havia apenas 601 pessoas com deficiência empregadas no Estado de São Paulo – em 2008, esse número alcançou 102 mil pessoas.
“É um salto bem grande e que mostra que a inclusão está acontecendo. Por outro lado, ainda falta muito, pois a estimativa é que apenas 14% das empresas cumpram a cota. A responsabilidade pela inclusão tem de ser compartilhada entre empresas, governo e pessoas com deficiência. As empresas devem assumir, sim, sua responsabilidade na capacitação de quem tem deficiência, preparando os funcionários para o mercado e para a cultura corporativa, pois as pessoas com deficiência estiveram por séculos à margem desse processo em nosso país. Além disso, a pessoa com deficiência deve atuar como protagonista de sua inclusão, mostrando do que ela é capaz e apresentando soluções para dificuldades e limitações que encontre para exercer sua função, pois quem está entrevistando e selecionando funcionários, muitas vezes, não conhece as especificidades de sua deficiência e não sabe tudo o que ela pode realizar.”
Mercado exclui parcela de trabalhadores dos processos de inclusão
Os avanços na inclusão social verificados nos últimos anos não alcançam de forma igualitária todas as pessoas com deficiência. De acordo com Maria Gorete Cortez de Assis, do Hospital Próvisão, os deficientes visuais continuam à margem do processo de inclusão no mercado de trabalho.
“No caso das pessoas com deficiência visual, a legislação ajudou muito pouco. Existem poucas oportunidades de trabalho para os cegos e o mercado não conhece a capacidade que eles têm, pois são pessoas com total condição de trabalho, desde que haja os recursos necessários.”
A realidade exposta por Gorete é confirmada por dados oficiais: segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, do total de empregos preenchidos por pessoas com deficiência no Brasil, apenas 5,79% foram destinados a deficientes visuais, enquanto 54,47% foram preenchidos por pessoas com deficiência física (54,47%), seguida dos auditivos (22,49%). Pessoas com deficiências intelectuais (5,10%) e com deficiências múltiplas (1,26%) foram ainda menos incluídas entre os trabalhadores brasileiros.
Jornalista e editor do blog Guia Inclusivo, que trata de assuntos relacionados às pessoas com deficiência com enfoque nas cidades do Vale do Paraíba, Luis Daniel da Silva avalia que a convivência é importante para quebrar as barreiras que existem entre empresas, funcionários e candidatos às vagas de emprego. Por isso, é no próprio processo de inclusão que as dificuldades encontradas podem ser minimizadas e até resolvidas.
“É na convivência cotidiana que surgem as dúvidas, as possibilidades, as experiências, pois não existe ‘receita’ para se incluir. A pessoa com deficiência quer ser tratada como qualquer outra, com seus direitos e deveres”, afirma Luis Daniel.
Fonte: Revista Lettering
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