Acessibilidade em centros históricos de cidades mineiras
No Brasil, 68 conjuntos urbanos são tombados como Patrimônio Cultural pelo Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), segundo dados de 2017. O tombamento desses espaços tem como objetivo preservar a história e a cultura do país. Porém, devido ao valor patrimonial e dificuldade para reformas, esses lugares encontram uma série de obstáculos para serem acessíveis às pessoas com deficiência (PCDs) ou mobilidade reduzida.
Os Centros Históricos não foram planejados para pessoas desses dois grupos. Na realidade, foram construídos de acordo com o desenvolvimento do país, com base nas atividades desempenhadas em cada lugar na época e sem a tecnologia e os debates presentes na sociedade atual. Os conjuntos urbanos representam uma identidade social e cultural da fase inicial do Brasil, que não tinha como pauta a acessibilidade para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. O desafio, em 2019, é saber como garantir que o direito à cidade seja efetivo para todos preservando a memória.
O cenário da legislação atual
Em 2012, foi sancionada a Lei nº 12.587, que instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana. O objetivo é garantir acesso universal às cidades. Dois anos depois, o Iphan publicou o Caderno Técnico “Mobilidade e Acessibilidade em Centros Históricos”, que ofereceu soluções para acessibilidade nesses locais.
Todas as cidades com mais de 20 mil habitantes, incluindo as históricas, são obrigadas por lei a elaborarem um Plano de Mobilidade e Acessibilidade. De acordo com a Política Nacional de Mobilidade Urbana, mobilidade são os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano e as condições em que eles acontecem. Acessibilidade é definida como a facilidade disponível para que pessoas realizem percursos nos locais desejados com autonomia.
A pauta é defendida pelo arquiteto e pesquisador dinamarquês Jan Gehl. Em seus trabalhos, ele debate a ideia de que os espaços públicos devem ser cuidadosamente projetados de forma a reforçar os processos de fomento da vida urbana, pois as cidades são espaços de trocas e interações.
Há uma pedra no meio do caminho
A realidade das cidades históricas brasileiras, no entanto, é outra para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. Calçamento de pedras. Morros. Degraus e escadarias. Passeios estreitos. Percursos íngremes.
A descrição representa pontos turísticos do estado de Minas Gerais: Ouro Preto, Mariana e São João del-Rei. O poeta mineiro, Carlos Drummond de Andrade, diz em um dos seus famosos poemas: “no meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho”. Nas cidades históricas, as pedras estão no meio do caminho entre mobilidade urbana e acessibilidade.
Exemplos ao redor do mundo demonstram, porém, que é possível promover adaptações para permitir que todos acessem pontos históricos das cidades, sem interferir no valor histórico e na herança cultural. Ávila, por exemplo, é um município situado na Espanha, patrimônio cultural da humanidade e reconhecido pelas muralhas bem preservadas da época medieval. A cidade possui acessibilidade em pontos históricos, com melhorias que incluem elevadores e rampas especiais.
Uma norma técnica para replicar
No Brasil, os direitos à cidade e à cultura são garantidos pela Constituição Federal. A garantia se aplica às pessoas com deficiência que, atualmente, representam 6,7% da população de acordo com dados do IBGE. A promoção de acessibilidade para pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida é estabelecida pela Lei nº 10.098/00.
Em 2004, foi desenvolvida a NBR 9050, norma técnica brasileira para acessibilidade em edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos. A versão atualizada do documento é de 2015.
O objetivo da NBR é instruir arquitetos, engenheiros, construtores e demais profissionais envolvidos na manutenção dos espaços urbanos a desenvolverem acessibilidade de acordo com aspectos técnicos.
A ideia de um desenho universal
O Iphan defende que deve ser adotado o desenho universal em ambientes urbanos. Ou seja, desenvolver projetos que atendam a todos os cidadãos, de modo a respeitar suas diferenças, ainda que sejam restrições temporárias de mobilidade. A acessibilidade não envolve apenas aspectos técnicos, mas também sociais, como o direito à cidade.
O desenho universal é composto por sete princípios básicos: uso equiparável às diferentes pessoas; flexibilidade do uso; uso simples e intuitivo; informação perceptível; tolerância ao erro; baixo esforço físico; e tamanho e espaço para apropriação e uso. Os preceitos fazem parte da NBR 9050 (2015).
Apesar das normas e regulamentações, não há uma teoria para ser aplicada em todas as cidades históricas. De acordo com o Iphan, para efetivação da acessibilidade nesses locais, é necessário conhecer profundamente cada patrimônio e desenvolver soluções específicas para cada espaço.
O que dizem os especialistas
Minas Gerais é o estado com mais bens culturais reconhecidos pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). No Brasil, existem 12 bens culturais que possuem reconhecimento pela organização, sendo quatro em território mineiro. Eles aparecem com destaque nas cidades históricas do estado: Ouro Preto, centro histórico de Diamantina e Santuário de Bom Jesus do Matozinhos, em Congonhas. O quarto é o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte.
Quatro cidades históricas de Minas Gerais apresentam cenários diferentes em relação à acessibilidade. Na prática, há poucas intervenções realizadas no espaço urbano a fim de cumprir a legislação a respeito dos direitos à cidade e à cultura estabelecidos para PCDs e pessoas com mobilidade reduzida.
São João del-Rei
O município de São João del-Rei (MG), possui cerca de 90 mil habitantes e está situado na mesorregião do Campo das Vertentes, no estado de Minas Gerais. O início do povoamento da localidade deu-se no final do século 17 às margens do Rio das Mortes. Traços do período colonial podem ser observados em seus casarões e igrejas, caracterizando-se por um conjunto arquitetônico bem preservado.
Qual o cenário?
Márcio Danilo Santos, arquiteto e mestre em Artes, Urbanidades e Sustentabilidade pela UFSJ (Universidade Federal de São João del-Rei) pesquisa acessibilidade e mobilidade urbana no centro histórico da cidade.
Ele aponta alguns fatores que dificultam consideravelmente a utilização do espaço urbano por cadeirantes e demais pedestres: “As rampas de acesso às calçadas em São João del-Rei quase sempre apresentam condições de insegurança devido ao dimensionamento inadequado por não seguir às normas reguladoras, o péssimo estado de conservação, os revestimentos inadequados, a falta de interligação pela faixa de pedestre com a calçada ao lado oposto da via e a falta de sinalização semafórica”, explica ao Nexo.
O que pode ser feito?
De acordo com Santos, há diversos problemas que demandam soluções simples no centro histórico de São João del-Rei. Por exemplo, a readequação e construção de rampas em estabelecimentos comerciais, rampas de acesso às calçadas em ambos os lados das vias ligadas pela faixa preferencial ou por sinalização semafórica, pintura e sinalização das rampas e faixas, readequação de áreas públicas focando no bem estar e conforto dos pedestres, etc.
“Todavia, muitas destas soluções, nesta região especificamente, esbarram em legislações ligadas às condições históricas de boa parte do bairro Centro de São João del-Rei, o que envolve adaptações em edifícios históricos e interferência em patrimônios tombados. Contudo, com a elaboração de projetos técnicos por profissionais qualificados na área de Arquitetura e Urbanismo e o devido acompanhamento da execução das obras, muitos dos problemas anteriormente apresentados seriam sanados”, afirma o arquiteto.
Mariana
Conhecida como “a primeira de Minas”, Mariana foi a primeira vila, a primeira cidade e a primeira capital do estado. Tombada como Monumento Nacional em 1945, a cidade tem três séculos de existência. Segundo o IBGE, a população é estimada em 60.724 pessoas. Em 2015, sofreu o pior desastre ambiental do Brasil, com o rompimento da Barragem do Fundão.
Qual o cenário?
Tião Lopes, arquiteto e sócio-diretor da ARQSOL- Arquitetura e Tecnologia com experiência nas áreas educacionais e patrimoniais, afirma que os problemas de acessibilidade e mobilidade perpassam a construção desses locais ao longo da história. Mariana e outros conjuntos urbanos históricos se adequaram a topografia local e cresceram de modo desordenado.
Para ele, a realidade da mobilidade em geral é parecida com vários municípios brasileiros. Existem muitos obstáculos físicos como, por exemplo, calçadas estreitas e becos.
O que pode ser feito?
A acessibilidade em cidades históricas se tornou um desafio para arquitetos e urbanistas. Mesmo assim, acessibilidade é algo possível e que deve ser feito. “É necessário respeitar a história e as pessoas, buscando um equilíbrio, para que possam usufruir do patrimônio cultural das cidades. Acessibilidade urbana e patrimônio cultural são temas complexos que exigem um tratamento cuidadoso, não existindo receitas prontas a serem aplicadas”, diz Lopes ao Nexo.
Algumas possíveis soluções para o município, de acordo com o arquiteto, são rampas, elevadores, corrimões e rebaixamento de calçadas. Tudo isso de forma que não interfira no Patrimônio e respeite as normas vigentes. “Em se tratando de municípios históricos, qualquer mudança deve também ser aprovada pela entidade patrimonial de responsabilidade, seja Iphan, Iepha, Secretaria Estadual de Cultura e/ou Secretaria Municipal de Cultura. É um esforço conjunto que requer a aprovação de todos os entes envolvidos”, diz ele.
Ouro Preto
Fundada por volta de 1698, o município de Ouro Preto acumula dois importantes títulos como Patrimônio Histórico. Em 1933, foi declarada Cidade Monumento Nacional. Já em 1980, tornou-se Patrimônio Cultural da Humanidade, pela Unesco. Atualmente, estima-se que a população da localidade é de 74.281 pessoas.
Qual o cenário?
Enquanto Patrimônio Histórico, Ouro Preto apresenta particularidades que apresentam grandes desafios para a implantação de uma política de mobilidade urbana sustentável. Isso envolve também acessibilidade. Entre 2014 e 2015, o Instituto de Mobilidade Sustentável Rua Viva elaborou e entregou à cidade o Plano Diretor de Mobilidade Urbana. O planejamento ainda não foi implementado. Em relação à acessibilidade, o documento diagnosticou que, para realizar o previsto por leis e normas, é necessário tratar cada questão especificamente.
O que pode ser feito?
De acordo com Sandra Nogueira, prefeita universitária dos campi da UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto) e doutora em Geografia e Planejamento Urbano Regional, a legislação urbana é completa, mas a mobilidade urbana é deficitária. A situação é ainda pior para PCDs e pessoas com mobilidade reduzida.
“Em Ouro Preto, o que se encontra hoje é a necessidade de se trabalhar a acessibilidade desde a aplicação das normas e leis em vigor até o desenvolvimento de projetos específicos que permitam o mínimo de acesso desse público aos espaços de uso cotidiano coletivo e sua circulação autônoma”, diz Nogueira ao Nexo.
Determinados locais permitem alterações no desenho urbano. Porém, há outros em que intervenções urbanas significativas não podem ser feitas. Nestes casos, é recomendado a implantação de equipamentos, como, por exemplo, rampas rolantes.
Tiradentes
Com uma população estimada, pelo IBGE, em 7.981 pessoas, Tiradentes tem origem no chamado Arraial Velho, que surgiu no ano de 1702. O município foi tombado pelo Iphan em 1938 e conserva diversos espaços arquitetônicos do século 18. A localidade é palco de diversos festivais, como o Festival de Gastronomia e o Festival de Cinema, que atraem anualmente pessoas de várias regiões do país.
Qual o cenário?
Em Tiradentes, os debates sobre acessibilidade e mobilidade estão sendo realizados por um grupo de trabalho formado por técnicos do Iphan, do Ministério Público Federal, representantes da prefeitura, dos conselhos de turismo e desenvolvimento urbano, representantes de empresários, comerciantes e da sociedade civil.
De acordo com José Maurício, técnico de edificações do escritório do Iphan no município, existem adaptações pontuais dentro do conjunto histórico. Um exemplo é a Igreja de Nossa Senhora da Mercês onde foi instalada uma rampa móvel para garantir acesso ao adro.
As intervenções, porém, não se inserem dentro do contexto da cidade como um todo. “Mesmo que em algum grau os prédios compreendam instalações acessíveis, os acessos são, de certa forma, limitados pelas vias, devido às características específicas da cidade, como as pavimentações das vias, que são em lajes de pedras planas e pedras roladas, além das condições construtivas das calçadas”, explica ao Nexo.
O que pode ser feito?
A arquiteta e chefe do escritório do Iphan em Tiradentes, Camila Ciccarone, afirma que debates sobre os temas estão sendo criados no município. O objetivo é consolidar um Plano de Mobilidade e Acessibilidade Urbana.
Os representantes do escritório apontam que “toda a construção da viabilidade de planos e projetos que atendam às demandas de acessibilidade devem contar com a participação da comunidade local, criando a partir das experiências e vivências as soluções respaldadas nas normas e orientações de acesso e de proteção do patrimônio cultural.”
Fonte: NEXO
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