A pé ele não vai longe. A história de um cadeirante alcoólatra.
Ao longo dos anos, Gus Van Sant construiu uma filmografia bastante variada, capaz de atender a diferentes demandas e públicos. Seja por trabalhar com uma temática LGBTQI, ou pela experimentação formal ou, não tão comumente, fazer um (nem sempre) bom arroz com feijão.
A pé ele não vai longe, novo filme de Sant estrelado por Joaquin Phoenix e Jonah Hill, faz parte deste último grupo, no formato convencional de cinebiografia – de todos, o mais formulaico. “Arroz com feijão”, no entanto, passa longe de ser o termo correto para descrever o homem que Sant escolheu retratar em seu filme.
A pé ele não vai longe adapta para os cinemas a vida de John Callahan, cartunista renomado que se destacou por um um humor ácido e também por colocar suas próprias experiências como tetraplégico com irreverência no papel.
Apropriando-se das próprias limitações motoras, Callahan criou um traço único e bastante memorável para seus trabalhos, que tratavam de temas tabu e satirizavam, entre outras coisas, o capacitismo no modo como parte da sociedade enxerga deficientes físicos.
Porém o roteiro de Sant, construído sobre um argumento de Callahan quando este ainda era vivo – Robin Williams também estava envolvido no projeto inicial -, vai fundo em uma investigação da persona por trás daqueles rabichos brilhantes.
Vemos o período decisivo no qual Callahan perde seus movimentos e adapta-se a essa nova realidade, com altos e baixos muito baixos, mas o foco surpreendente é em sua superação do alcoolismo e a busca por perdoar a mãe biológica, que o abandonou ainda pequeno. Ou seja, uma robusta sessão de terapia cinematográfica.
Apesar do material ter tudo para ser mais um drama “tear jerker”, obstinado em arrancar lágrimas do público através de uma manipulação desses temas, A pé ele não vai longe é uma experiência extremamente bem-humorada – algo que já fica aparente em seu título, cuja essência foi felizmente mantida na tradução.
Sant usa de diversos recursos para manter seu longa no tom proposto, seja intercalando os cartums de Callahan com a ação ou apostando em técnicas que, fora desta proposta, seriam equivocadas mas aqui caem como uma luva – a visão que Callahan tem da mãe, com um cross fade cafona, está entre os pontos altos.
Além da escolha por um tom leve, o trabalho do elenco também é digno de nota, especialmente Phoenix como Callahan e Hill como seu mentor no programa de reabilitação. Registrados na maior parte do tempo em closes fechadíssimos – cheios de textura na fotografia de Robert Blauveut -, os dois parecem ter entrado em suas respectivas personagens ao ponto de que nada, nem sob um microscópio, poderia aparentar falso ou encenado.
Phoenix, é claro, tem o trabalho mais pesado aqui, sempre em cena e retratando Callahan ao longo de momentos distintos, mas Hill tem uma entrega igualmente marcante mesmo com menos tempo em tela.
Como em quase toda cinebiografia, A pé ele não vai longe não deixa de se tornar um pouco didático a certo ponto, e o impacto disso pode variar de acordo com expectativas.
O longa se inicia muito bem, instigando a partir de uma montagem não-linear que surte um efeito de confusão totalmente apropriado ao(s) momento(s) caótico(s) que Callahan vive, passando bem o ponto de que seus maiores problemas datam de muito antes do acidente que o deixou tetraplégico.
A resolução destes problemas, no entanto, acaba por ser representada de forma protocolar, como na montagem que traz Callahan fazendo as pazes com as pessoas de sua vida.
Mesmo assim, pode-se dizer que A pé ele não vai longe está entre uma das cinebiografias mais espirituosas que o cinema americano produziu nestes últimos dois ou três anos.
De certo modo, faz uma bela companhia à comédia Fútil e Inútil, que David Wain dirigiu com base na história do também irreverente editor Doug Kenney – um filme mais fraco que o de Sant, mas com uma abordagem inesperada e um final de matar.
É bom ver que, mesmo no âmbito das cinebiografias, há a possibilidade de adaptar não só os fatos de B a D a J, mas também emular a essência e a personalidade de uma pessoa com sucesso para o cinema. A obra pode ser tecnicamente modesta, mas cria interesse no trabalho do retratado e deixa um sorriso no rosto do espectador.
Fonte: Observatório do Cinema
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