Antes de achar a entrada, Michell caiu. Naquele dia, ele não queria usar bengala. Preferiu não perguntar onde estava o palco, o banheiro, o bar, o portão de saída do show de Los Hermanos, o primeiro ao qual foi sozinho. Vítima de glaucoma e com baixa visão, o estudante de comunicação social de 26 anos enfrenta dificuldades diárias de locomoção, mas o consumo de cultura e lazer é um dos desafios com mais obstáculos.
“A gente quer independência, e os espaços não dão condições. Não há filmes com audiodescrição, só em festivais. São poucas peças e poucas horas na TV”, diz o representante da Associação de Cegos de Pernambuco no Conselho da Juventude e consultor da Superintendência Estadual de Apoio à Pessoa com Deficiência (Sead).
As dificuldades e conquistas de Michell Platini e outros 2,4 milhões de pernambucanos com deficiência para desfrutar cinema, teatro, museu, casa de show ou boate plenamente acessível no estado são tema da série Cultura limitada. Apesar do alto índice – 27% da população do estado e 24% do país -, medidas simples ficam à margem das decisões de instituições, produtores e até órgãos públicos.
“A pauta da acessibilidade cresceu, principalmente nos últimos cinco anos. Tenho visto seminários, eventos. Há leis para promover a acessibilidade na cultura. Mas o estado não aplica, porque desconhece campo, complexidade e recursos de mediação”, analisa a terapeuta ocupacional Patrícia Dorneles, criadora da primeira especialização em acessibilidade cultural do país, na UFRJ.
A adaptação da legislação é recente e lenta, mas os avanços são detectados na minimização de barreiras físicas, comunicacionais e de atitude. “Já tentei ver a peça Cinderela, com Jason Wallace, no Teatro de Santa Isabel, e me disseram que não tinha acessibilidade. Depois, descobri que tinha, mas a pessoa não soube informar. Vou muito ao cinema, pois a estrutura é melhor”, conta Geziel Bezerra, de 31 anos, cadeirante há 15.
Com baixa visão por conta de um glaucoma, Michell quer independência para desfrutar o lazer.
Com a reportagem, o assessor técnico da Coordenadoria de Inclusão da Pessoa com Deficiência da Secretaria de Direitos Humanos de Olinda entrou pela primeira vez no prédio de 1850, cujas rampas e elevador foram instalados em 2002. “Vi em fotos e na TV, mas não imaginava tão bonito. Quero ver um espetáculo”.
A linguagem Braille foi oficializada em 1962, mas 95% dos livros não têm versões acessíveis, de acordo com a Fundação Dorina Nowill Para Cegos. Poucas obras de autores ligados ao estado premiadas em anos recentes podem ser consumidas por cegos. Só em 1989, com a Lei 7.853, foram estabelecidas normas universais de acessibilidade na educação, saúde, formação profissional e no mercado de trabalho, nos recursos humanos e nas edificações. A cultura ficou de fora. A audiodescrição na TV se tornou obrigatória em 2000 (Lei 10.098), mas o prazo não foi definido. Já o Estatuto da Pessoa com Deficiência foi sancionado em julho deste ano, após 15 anos de discussões.
Em Pernambuco, só em 2015 o principal edital de fomento (Funcultura) passou a exigir cópia com legendagem descritiva, Libras e audiodescrição de filmes e produtos para a TV e a aprovação de pelo menos um projeto com ações de acessibilidade. O número de iniciativas aprovadas foi de nenhum, em 2007/2008, para seis, em 2013/2014, diz a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). A instituição não soube informar a quantidade dos outros segmentos.
Nas artes cênicas, a popularização esbarra no despreparo técnico das casas e produções. O Teatro Luiz Mendonça, do Dona Lindu, e o Sesc de Goiana são os únicos do estado com recursos de audiodescrição. O Teatro do Parque deve se adequar na reforma iniciada em 2010. “O mercado para o lazer acessível está em ascensão. Pesquisas mostram que, a cada três dólares empregados em acessibilidade, o lucro é de sete”, atesta o doutor em psicofísica Francisco Lima, professor da UFPE.
Paulista e cego de nascença, mora no Recife desde 2002 e reforça que as barreiras interpessoais são as mais graves. Em muitos casos, é o preconceito, e não as dificuldades físicas, estruturais e tecnológicas, que impede o pleno acesso a direitos básicos garantidos por lei. São as chamadas barreiras atitudinais, as principais vilãs de uma cultura acessível.
+ depoimentos
“O lazer faz parte da vida, e eu gosto muito do Recife Antigo. Não adianta ter meus direitos básicos se não tenho ao lazer e à cultura. É complicado sair à noite, mas vou a shows, sempre em camarote ou frontstage, e é raro sair sozinha. A barreira não é só a acessibilidade física, mas atitudinal. Há muitos lugares que não recebem bem a gente. Isso me incomoda. Se você quer saber algo sobre mim, pergunte a mim. No ano passado, fui ao Cais do Sertão. Lá tem primeiro andar, mas não tinha acessibilidade, pois o elevador-plataforma estava em manutenção (o equipamento está desativado e deve voltar a funcionar em 20 dias)”
Renata Maia, 25, tem deficiência física, devido a uma paralisia cerebral. É formada em serviço social, tem pós-graduação em direitos humanos e estuda para concursos.
“Certa vez, cheguei a uma loja, estendi a mão e colocaram uma moeda. Já ouvi muito ‘fulano, vem atender esse rapaz’. Isso mexe com a dignidade da pessoa. Uma vez ou outra, a pessoa ri. Aprendi uma coisa muito chata, mas que funciona: se você fala que acessibilidade é uma lei federal, são duas horas. Se você ‘grita’, num instante é resolvido. Em restaurante, já perguntaram à minha filha, de 12 anos, o que eu queria comer. Já pedi para tirarem uma mesa para dar espaço a um amigo, cadeirante, e disseram que não podia. Como eu sou um professor universitário, doutor, educado, coloquei uma em cima da outra e pronto”
Francisco Lima, 50, é doutor em psicofísica e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Nasceu cego e estava no primeiro Rock in Rio, em 1985.
“Eles dizem que é acessível, mas, na prática, é sempre complicado. O Teatro de Santa Isabel é o melhor a que já fui, porque você fica nos camarotes, sem se sentir tão desigual. Fui a um espetáculo em julho, A matinada, com mestres do coco, mas preciso de ajuda, porque a entrada é com gramado. No Teatro Luiz Mendonça e no Boa Vista, tem que ficar em cima, onde vocês, andantes, passam, mas não no lugar das cadeiras. Eu toco pandeiro, caixa, mineiro, alfaia, ganzá e um pouco de atabaque. Comecei a tocar de berço, com 6 anos. Já participei de muitos desfiles no carnaval, mas agora só participo da abertura, com Naná Vasconcelos. Atualmente, estou me formando para ser um griô (difusor da tradição) aprendiz.”
Liu Dias, 27, é multi-instrumentista e integrante do grupo Afojubá Batuque. Devido a um problema nos tendões, nunca pôde andar e é cadeirante desde os 11.
+ O QUE DIZ A LEI // Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146, de 6 de julho de 2015) e Lei 12.933, de 26 de dezembro de 2013
– “É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes (…) à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros”
– “A pessoa com deficiência tem direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, sendo-lhe garantido o acesso: a bens culturais em formato acessível; a programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais e desportivas em formato acessível; e a monumentos e locais de importância cultural e a espaços que ofereçam serviços ou eventos culturais e esportivos”
– “O poder público deve adotar soluções destinadas à eliminação, à redução ou à superação de barreiras para a promoção do acesso a todo patrimônio cultural”
– “As salas de cinema devem oferecer, em todas as sessões, recursos de acessibilidade para a pessoa com deficiência. (prazo de 48 meses para adequação)”
+ O QUE É PRECISO // Normas para atender às pessoas com deficiência
– Audiodescrição é o principal recurso de promoção de acesso aos conteúdos culturais para pessoas com deficiência visual, em filmes, apresentações cênicas, exposições e visitas educativas.
– Legendas (mesmo para filmes nacionais) e janelas com tradução para Libras permitem que o filme seja acompanhado por surdos
– A comunicação em Libras deve ser usada em visitas, palestras, espetáculos e atividades culturais. Para surdos oralizados e com baixa audição, há recursos de indução magnética, intérpretes de voz ou de leitura labial
– O espaço deve disponibilizar placas, folhetos e mapas informativos em português, Braille, letras ampliadas com contraste, símbolos, legendas e sinal sonoro, quando aplicável, além de piso e mapa tátil
– Barreiras arquitetônicas devem ser eliminadas, com destaque para rampas, elevadores, pisos e passarelas planos e antiderrapantes, corredores e portas amplos, entre outras diretrizes estabelecidas pela NBR 9050, da ABNT
– Materiais de apoio sensoriais (táteis, auditivos, olfativos e gustativos) auxiliam a usar outros sentidos para compreender melhor os conteúdos das manifestações culturais
– A capacitação dos profissionais é um dos mecanismos mais importantes, pois elimina barreiras atitudinais e permite a comunicação oral e escrita objetiva de forma compreensível
Fonte: Diário de Pernambuco