Entrevista de Ricardo Shimosakai para o site da Copa 2014

por | 14 jul, 2010 | Turismo Adaptado | 3 Comentários

Turismólogo e cadeirante, Ricardo Shimosakai dedica-se à questão da acessibilidade no turismo brasileiro e mantém o blog Turismo Adaptado (www.turismoadaptado.zip.net). Confira o que ele pensa sobre esta questão do Brasil e no mundo e suas expectativas para a Copa de 2014.

1. Sabemos que você é turismólogo. Como surgiu o seu interesse por Turismo?
Depois do tiro que levei num sequestro relâmpago em 2001, duas das coisas de que mais senti falta foram meus passeios e minhas viagens. Então comecei a pensar nas alternativas para voltar à minha rotina de uma pessoa acostumada a sair e conhecer novos lugares. Depois fui perceber que isso não era um desejo somente meu, e comecei a trabalhar nesse campo visualizando uma oportunidade de mercado e um modo de auxiliar meus colegas com deficiência. Decidi me aprofundar e ingressei no curso de Turismo, no qual sou formado, além de buscar conhecimento atualizado sobre todos os tipos de deficiência.

2. Como turista, o que mudou para você com a deficiência física, da escolha do destino ao decorrer da viagem?
Comecei a prestar mais atenção na acessibilidade, porém sem me privar de visitar um local pela falta deste item. Desenvolvi habilidades para me virar em casos de dificuldade, como por exemplo tomar banho num hotel em que não há maneira de acessar o chuveiro por conta do box apertado. Então aprendi a tomar banho de canequinha, ou mesmo utilizando uma toalha úmida, método popularmente conhecido como “banho-de-gato”. Mas isso não é o correto, pois a deficiência não está em nós, e sim no estabelecimento, que não está preparado para nos receber de maneira adequada. Perdemos muito tempo também, pois enquanto uma pessoa consegue entrar num estabelecimento com facilidade, geralmente precisamos ficar à procura de como acessá-lo, quando isso é possível. No começo, fui auxiliado. Viajei com a família, com colegas, mas depois fui buscar minha independência e passei a viajar sozinho. Passei por diversas dificuldades que me fizeram amadurecer como pessoa e como turista, como por exemplo perceber que centros de informações turísticas dificilmente sabem nos informar sobre a acessibilidade dos locais turísticos, por isso passei a procurar essas informações antes de realizar a viagem. Ironicamente, como as dificuldades são maiores do que antes, o prazer de depois ter conseguido superá-las também é maior.

3. Qual foi a melhor experiência turística (incluída a questão da acessibilidade) que você já vivenciou no Brasil?
Apesar de cada lugar ter sua característica particular, a minha melhor experiência turística no Brasil até hoje – por diversos fatores, incluindo a acessibilidade – se deu em Curitiba. Foi o primeiro destino para o qual fiz uma viagem sozinho após me tornar uma pessoa com deficiência. A questão do transporte é bastante facilitada, com ônibus equipados com elevadores veiculares, as estações-tubo, além das linhas de ônibus turístico (conhecido como Jardineira), todos contemplando a acessibilidade. O Jardim Botânico, a Rua 24 Horas, a Ópera de Arame e o Parque Tanguá, entre outros, eram possíveis de visitação, apesar das falhas de acessibilidade aparentes numa avaliação mais rigorosa. Por essas e outras razões, Curitiba era considerada a cidade modelo brasileira.

4. Que outras cidades / destinos brasileiros estão bem estruturados, são acessíveis, e você indicaria a colegas?
É dificil dizer que existe um destino acessível no Brasil. Portanto comecei a trabalhar preparando pacotes turísticos em que todos os locais e as atividades propostos são acessíveis. Preparamos Bonito, Foz do Iguaçu, Pantanal e Itacaré neste formato, e já estamos trabalhando para deixar Rio de Janeiro, Porto de Galinhas, Fernando de Noronha e Manaus nas mesmas condições. Mas, para que a viagem atinja uma total satisfação, realizamos uma conversa com o turista com deficiência para conhecer melhor quais são suas dificuldades, pois cada pessoa com deficiência possui necessidades diferentes, que às vezes são mais do que questões de acessibilidade, mas sim da forma como ele será atendido. Por exemplo, um rapaz que foi viajar sozinho a Itacaré não possuía os braços e tinha pernas muito curtas, então colocamos uma pessoa para auxiliá-lo no banho, na troca de roupas e na alimentação. Na verdade, qualquer destino é viável, dependendo do perfil da pessoa com deficiência.

5. Melhorias e adaptações em hotéis e atrações turísticas visando a acessibilidade podem ser vistas como um investimento? Por quê?
Pessoas com deficiência geralmente viajam acompanhadas, e se o local não possui acessibilidade, provavelmente está deixando de receber não só pessoas com deficiência mas também seus acompanhantes. Sem contar que a acessibilidade é um item procurado pela terceira idade, segmento que tem ganhado força no turismo nos últimos anos. A acessibilidade pode ser traduzida como conforto, pois rampas, elevadores, barras e outros itens, além de atender a todos, também são facilitadores para qualquer pessoa. Alguns equipamentos, como áudio-guias em museus, servem como uma orientação mais detalhada para qualquer pessoa, além de que o mesmo aparelho utilizado poder conter recursos de áudio-descrição para cegos, criando assim um serviço que agrada a todos e, ao mesmo tempo, pratica a inclusão. Além disso, valoriza a imagem do estabelecimento perante a sociedade, pois empresas que se preocupam com o lado social são muito mais valorizadas pelo consumidor. Há relatos comprovados de empresários que investiram em questões de acessibilidade e inclusão e que hoje em dia estão tendo um retorno devido à atitude tomada.

6. Que estádios você já visitou na condição de deficiente físico? Como foram estas experiências?
Visitei Morumbi e Pacaembu (em São Paulo) e a Vila Belmiro, em Santos. No exterior, conheci o estádio do Barcelona. Para assistir a um jogo, somente o Morumbi; os outros foram visitações turísticas. No Morumbi, estacionei meu carro em vaga reservada no interior do estádio, depois entrei por um acesso diferenciado com outros dois colegas. Não fiquei na área acessível, pois acompanhei meus colegas na arquibancada e fiquei num corredor frontal.

7. O que é essencial para um estádio ser acessível?
O essencial para pessoas com deficiência física são rampas ou elevadores, dependendo da estrutura arquitetônica, instalações sanitárias, circulação com rotas acessíveis e sinalização adequada, além do espaço onde a pessoa com deficiência física assistirá ao jogo. Um serviço de apoio é recomendado pela FIFA, para que todas as pessoas com deficiência possam ser atendidas. Mapas táteis do estádio, sinalização em braille e pisos táteis são itens importantes para quem tem uma deficiência visual. Pessoas treinadas para interpretar a Língua Brasileira de Sinais (Libras) é o recurso mais importante para pessoas com deficiência auditiva – que, apesar de ser utilizada somente no Brasil, possui semelhanças com outras línguas estrangeiras de sinais. Além disso, julgo importante que as informações dos recursos de acessibilidade sejam divulgadas na comunidade de pessoas com deficiência, para estimular a ida aos estádios de quem ainda tem dúvidas.

8. Além de ter estádios acessíveis, quais são os principais pontos onde o Brasil poderá investir para realizar uma Copa acessível?
Além dos estádios, toda a infraestrutura das cidades também deve ser pensada sob a ótica da acessibilidade. Pois o evento influenciará outras questões como os transportes aéreo e rodoviário, hotelaria, informação, além da visitação turística nos atrativos de cada sede. As pessoas geralmente vêm assistir somente aos jogos do time de seu país de origem, e não necessariamente a todos. Então, nessa logística, ficam sobrando espaços de tempo, que serão preenchidos para visitação local. Alguns também usam a oportunidade para visitar a cidade modificada para o grande evento, e nem chegam a ir aos estádios, assistindo de fora deles nas Fan Fests ou mesmo somente para sentir o clima festivo. Então outros serviços e locais como bares e restaurantes, praias, além de toda a cadeia do comércio, serão influenciados. Produzindo nossos destinos como locais acessíveis, seja gerada uma divulgação espontânea dos próprios visitantes, que retornarão aos seus locais de origem e passarão suas impressões aos seus conhecidos. Mas deve-se prestar atenção em todos os tipos de deficiência, e trazer experiências de sucesso como o projeto do Bayer 04 Leverkusen da Alemanha, realizado no Brasil pela Freeway com o nome de Projeto Ver-o-gol, em que pessoas cegas foram levadas ao estádio para assistir a um jogo de futebol por meio da técnica da áudiodescrição, com a narração em tempo real diferenciada, com detalhes do que se passa no jogo. A FIFA reforça as orientações quanto à segurança nos estádios, como procedimentos e equipamentos para evacuação do local em caso de emergência. Também são feitas recomendações técnicas para que a visão do campo do local onde pessoas usuárias de cadeira de rodas irão se posicionar não seja obstruída por outros espectadores, mesmo nos momentos de comemoração, em que todos estarão saltando e agitando suas bandeiras. Também é citado que se deve prover acesso a todos os locais, para que a pessoas com deficiência possam desfrutar das mesmas oportunidades de uma pessoa não deficiente.

9. Que outros países o Brasil poderia tomar como exemplo para fundamentar suas ações visando a acessibilidade no turismo? Por quê?
Barcelona, quando foi escolhida para sediar as Olimpíadas e consequentemente as Paraolimpíadas de 1992, realizou uma grande reforma na cidade, incluindo as questões de acessibilidade. As calçadas são muito boas, com rebaixamento de guias em grande parte da cidade, além de museus e praias acessíveis, entre outros atrativos que prezam a inclusão, de modo que a cidade espanhola se tornou uma referência mundial em acessibilidade. A Disney, em Orlando (EUA), tem brinquedos em que você pode entrar com a própria cadeira, sistemas de operacionalização para entrada facilitada nos mesmos, guias impressos indicando essas facilidades, transporte e hospedagem acessíveis em todo o complexo. Na França, uma organização chamada Tourisme & Handicap trabalha em conjunto com o equivalente ao Ministério do Turismo Francês, para orientar e viabilizar diversos pontos em relação à acessibilidade e à inclusão no turismo, fundamentais para que se tenha um resultado de qualidade. A Argentina tem um projeto de acessibilidade em San Martín de Los Andes, uma cidade de campo onde também há uma estação de esqui chamada Chapelco, com atividades de esqui na neve adaptado. Todos os ônibus e os principais atrativos de Londres são acessíveis, dando condições para uma visitação satisfatória.

10. Acha que o turismo pode ser considerado uma ferramenta de inclusão? E o esporte?
O turismo e o esporte podem ser considerados como uma ferramenta de inclusão, não somente a pessoas com deficiência, mas a todas as pessoas. Isto se dá principalmente pelo fator de socialização, já que podemos, numa atividade turística ou esportiva, conhecer outras pessoas e conversar de uma maneira agradável, por se tratar de um contexto de descontração. Focando um pouco mais nas pessoas com deficiência, muitas delas precisam de incentivos, principalmente aquelas que adquirem uma deficiência sem nenhum aviso e que passam por momentos de depressão. Além disso, quando uma pessoa passeia ou viaja está realizando uma atividade física e adquirindo cultura e conhecimento. Então este é um ciclo ativo composto por atividades de socialização, exercícios e ganho de conhecimento. O turismo e o esporte geralmente são atividades realizadas espontaneamente, então há neles um apelo muito mais eficaz para inserir uma pessoa deslocada no contexto ativo da sociedade, para que se sinta incluída.

11. Pratica algum esporte? Qual?
No final de minha reabilitação, comecei a fazer hidroterapia e me puxaram para a natação. Mas não achei legal, uma questão de gosto. Então comecei a praticar tênis de mesa, o que me ajudou imensamente. Além da parte física, que me auxiliava com força, resistência e equilíbrio, também recebia conselhos de colegas que tinham mais tempo de lesão, e, em competições realizadas fora de São Paulo, aprendia questões de independência, além de me socializar com diversas outras pessoas. No final, isso tinha um efeito psicológico enorme, o qual julgo o maior benefício. Depois parei com o tênis de mesa devido ao estudo e ao trabalho, retomei atividades físicas em academia, e atualmente estava me exercitando com uma hanbike, bicicleta adaptada em forma de triciclo. Além disso, realizo atividades de aventura, como paraquedas, mergulho, tirolesa, rafting, paraglider e rapel, entre outros. Também estou sempre ativo, saio para exposições, teatros, cinemas, eventos, restaurantes e vida noturna, atividades que me ajudam a exercitar o físico e o psicológico.

12. Gosta de futebol? Para que time torce? Tem algum jogo/lance/gol inesquecível? Se sim, por quê?
Sim, gosto bastante de futebol e torço para o São Paulo. Não sou fanático, porém sempre acompanho. Momento inesquecível no futebol foi a final de 1994 contra a Itália. Foi a primeira vez em que presenciei o Brasil ser campeão, além de ser uma final decidida nos pênaltis, o que acho muito mais tenso e emocionante, pois ali acaba o trabalho de uma equipe e prevalece a habilidade individual de cada jogador que irá fazer a cobrança e do goleiro, a quem cabe a defesa.

13. Pretende torcer bastante pelo Brasil na Copa de 2010? Onde pensa em assistir aos jogos da seleção?
Certamente, além de mim, milhares de outras pessoas no Brasil e também do exterior, pois nosso país é muito querido, principalmente no futebol, pelo qual é muito respeitado. É o único evento que consegue parar o país inteiro. Penso em reunir colegas para assistir em algum bar ou restaurante, ou então me dirigir a espaços onde haverá um telão ou diversas TVs para assistir junto de outras pessoas, pois nessa hora somos todos um só time e é uma oportunidade de conhecer mais pessoas num grande ambiente de socialização.

14. Como acha que a Copa de 2014 pode impulsionar e melhorar o turismo no Brasil, inclusive o turismo acessível?
O grande benefício de um evento internacional desse porte será a exposição. Apesar do foco ser a competição, ela será disputada em 12 cidades diferentes. Geralmente a mídia não mostra somente os jogos, mas também diversas outras informações das cidades onde serão disputadas as partidas, além de informações gerais sobre o país. Então, se a imagem que conseguirmos passar para o resto do mundo for positiva, isso será um grande benefício; porém o contrário também pode ser um grande prejuízo. Fazer a implantação de acessibilidade de forma correta não é só cumprir com obrigações exigidas pela FIFA, mas demonstrar que nosso país tem uma consciência social de inclusão, um fator muito valorizado pela sociedade mundial. Se os investimentos em acessibilidade forem aplicados além dos estádios, valorizando o transporte, vias públicas, sinalização, comércio e outros itens que fazem parte da cadeia produtiva desse evento, o retorno será inevitável. Posso afirmar que tanto turistas locais como estrangeiros com deficiência têm grande interesse em visitar as cidades-sedes numa proposta turística.

Essa entrevista pode ser vista originalmente no site Copa 2014 do Ministério do Turismo

http://www.copa2014.turismo.gov.br/copa/noticias/todas_noticias/detalhe/20100419_03.html

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3 Comentários

  1. Rafael Castro

    Olá Ricardo, tudo bem?

    Ainda nao conhecia o seu Blog mas acabei esbarrando pelo seu link visitando blogs de outros colegas!

    Parabéns pela entrevista e pelo trabalho que voce realiza. Também sou turismólogo e recentemente defendi minha dissertacao de mestrado sobre acessibilidade de pessoas com deficiencia ao transporte aéreo pelo Programa de Engenharia de Transportes da COPPE/UFRJ.

    Há pouquissimo tempo também resolvi criar um Blog para escrever algumas coisas sobre Transporte Aéreo Acessível e também Turismo, é claro.

    É sempre bom conhecer pessoas que compartilham dos mesmos assuntos!
    Um abraco,
    Rafael.

    • Ricardo Shimosakai

      Olá Rafael,
      Tenho tentado implantar um projeto de atendimento a pessoas com deficiência e mobilidade em aeroportos. Isso vai além da questão da hospitalidade, mas atinge também a segurança. Nas duas últimas viagens que realizei, quase tive acidentes graves por falta de experiência da Cia Aérea. Muito bom conhecer mais pessoas no meio acadêmico que vem abordando esse assunto. Acho que colocar esse assunto cada vez mais presente nas universidades ou mesmo no ensino fundamental é um dos melhores meios de mudar a visão das pessoas.

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