Enquanto uma multidão se acotovelava à espera das quentinhas com o almoço, uma mulher esperava em silêncio no canto, torcendo para que sobrasse comida para ela. Deficiente visual e viajando sozinha, a haitiana Nadine Talleis estava há quase dois meses naquele abrigo quando a BBC Brasil a abordou durante uma reportagem sobre a crise migratória no Acre, em 2013.

Após a entrevista, ela pediu ajuda para que pudesse deixar o alojamento, um ginásio cercado por lama onde 1.300 imigrantes dividiam dois banheiros e dormiam num espaço que deveria abrigar 200.

Passados dois anos, Nadine hoje mora no Distrito Federal, cursa o terceiro semestre da faculdade de Direito e pretende ser diplomata.

“Aquele foi o momento mais difícil desde que eu cheguei aqui”, lembra Nadine, de 29 anos, em conversa pelo telefone nesta semana.

Estado de emergência
As condições do abrigo em Brasileia fizeram o governo do Acre decretar estado de emergência. Com a carteira vazia, Nadine estava angustiada porque os empresários que visitavam o centro todos os dias para contratar imigrantes só recrutavam homens, em geral para serviços braçais no Sul e Sudeste.

“Eles iam embora e eu pensava: ‘vou ter que passar outra noite neste lugar’.”

Sem conseguir se deslocar pela cidade, pois só tem 15% da visão, ela contava com voluntários e funcionários do abrigo para encontrar algum emprego como massagista ou telefonista.

Imigrantes viviam amontoados e em más condições de higiene no abrigo em Brasiléia, no Acre.

A haitiana já havia desempenhado as duas funções ao viver por três anos na República Dominicana, antes de se mudar para o Brasil.

Na capital Santo Domingo, ela fez um curso de massagem e, ao trabalhar num call center, aprendeu a falar espanhol e inglês. Como já conhecia o francês e o creole, as línguas oficiais do Haiti, passou a dominar quatro idiomas.

Infância e terremoto
Nadine cruzou a fronteira com a República Dominicana após o terremoto que atingiu o Haiti em 2010. Ela vivia no país natal com o avô, que lhe criara desde que seus pais haviam morrido, em sua infância.

Apesar dos crescentes problemas para enxergar, conta que “tinha tudo de que precisava”.

Filha única, Nadine diz ter herdado duas casas dos pais, o que lhe garantiu certa segurança financeira.

No entanto, o terremoto pôs abaixo os dois imóveis, causando-lhe um grande prejuízo.

Como o avô estava velho e não podia sustentá-la, Nadine foi morar com parentes na República Dominicana. “Eles tratam muito mal os haitianos lá”, lembra.

Estima-se que 500 mil pessoas nascidas no Haiti ou de ascendência haitiana vivam na República Dominicana.

Grande parte do grupo está num limbo jurídico desde que, em 2013, a Justiça do país decidiu que filhos de imigrantes ilegais nascidos após 1929 não têm direito à cidadania dominicana, o que abriu o caminho para deportações em massa.

Nadine diz ter decidido deixar o país após gastar 30 mil pesos dominicanos (cerca de R$ 2.100) para tentar regularizar sua documentação, sem êxito. “Doeu muito o meu coração.”

Ela soube que um tio havia migrado para o Brasil e que o país era mais aberto a estrangeiros.

Com as economias que lhe restavam, voou da República Dominicana até o Equador e, de lá, contou com a ajuda de outros haitianos para viajar de ônibus até a fronteira do Brasil com o Peru.

“Pensei que o Brasil poderia me ajudar, porque havia progresso no Brasil”, ela disse em inglês ao ser entrevistada ainda no abrigo, em 2013.

No país, diz ter notado semelhanças entre haitianos e brasileiros. “A alegria do brasileiro se parece muito com a nossa. E quando você tem alegria, não falta nada.”

‘Nadjíne’
Hoje Nadine fala português com desenvoltura e se apresenta como “Nadjíne”, versão abrasileirada de seu nome. Foi sua habilidade linguística que chamou a atenção de funcionários do alojamento no Acre. Como não contavam com intérpretes, eles passaram a recorrer a Nadine para traduzir diálogos com imigrantes haitianos, senegaleses e dominicanos.

Um dos funcionários lhe sugeriu que tentasse a sorte em Brasília e lhe pôs em contato com pessoas que poderiam ajudá-la na capital.

Essas pessoas, diz ela, acabaram se tornando sua “família adotiva”.

Nadine passou alguns meses na casa deles e ouviu que uma faculdade próxima, na cidade-satélite de Taguatinga, abrira inscrições para o vestibular.

Ela se registrou e fez a prova para direito. Passou. “Foi o dia mais feliz da minha vida”, recorda.

Mas Nadine não tinha dinheiro para pagar o curso, e sua “mãe adotiva” sugeriu que ela procurasse um trabalho e, quando estivesse estabilizada, tentasse a vaga outra vez.

Nadine resolveu se matricular mesmo assim. “Eu disse para ela: ‘eu vim aqui para estudar. Se fosse para ficar sem fazer nada, não precisaria ter vindo’.”

No primeiro semestre, Nadine pagou as mensalidades da faculdade Mauá com a ajuda da família adotiva. Até que conseguiu uma emprego de auxiliar administrativa na própria instituição e ganhou uma bolsa integral para prosseguir com o curso.

Nas aulas, Nadine anda sempre com um gravador. A haitiana acessa os livros por meio de um programa de computador que lê os textos para ela.

Hoje ela aluga um apartamento perto da faculdade, em Vicente Pires.

‘Dom de conversar’
A haitiana já planeja os próximos passos. Depois de se formar, quer seguir a carreira diplomática. Ela pretende usar a facilidade que tem de se comunicar para ajudar países a se entenderem.

Religiosa – é adepta do adventismo –, Nadine diz ter recebido de Deus o “dom de conversar”.

“Eu gosto muito de paz, de tranquilidade, e acho que posso ajudar o mundo com esse dom.”

Como a legislação brasileira proíbe a contratação de diplomatas estrangeiros, Nadine sabe que talvez tenha de buscar trabalho em outros países.

Por enquanto, ela tem outro objetivo mais imediato: publicar um livro sobre sua vida. Nadine começou a escrever a obra neste mês e pretende terminá-la até o ano que vem.

Ela diz acreditar que sua trajetória possa inspirar outras pessoas.

“Não vou dizer que tenho tudo, mas estou feliz porque, apesar de todos os problemas, consegui encontrar o meu caminho.”

Fonte: G1

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