O último Censo realizado em nosso país apontou que, entre os 190 milhões de brasileiros, cerca de 45 milhões têm algum tipo de deficiência. Dessa população, mais de 3,6 milhões afirmam ter grandes dificuldades de locomoção. E desses, mais de 730 mil simplesmente não conseguem caminhar ou subir escadas de modo algum.
Os dados estão aqui. E é muita gente. Temos mais do que um Uruguai inteiro de pessoas com deficiência motora severa no Brasil. Mas apesar dessa condição atingir uma fatia significativa da população, a causa da acessibilidade ainda parece restrita a quem tem a deficiência e suas redes de familiares e amigos.
Nas últimas décadas houve uns tantos avanços nas políticas públicas e na legislação para contratação de pessoas com deficiência pelas grandes empresas. Ainda assim, as cidades brasileiras não parecem ser tão amistosas com quem tem necessidades especiais de locomoção. Para sentir na pele um pouco do que vivenciam esses nossos conterrâneos, o Desafio Hypeness da vez foi dar umas voltas de cadeira de rodas por São Paulo.
Como moro ao lado da Santa Casa e ao redor dela tem uma porção de lojas de artigos ortopédicos, achava que bastaria pegar o elevador, me dirigir a qualquer uma e sair com uma cadeira alugada. Não foi bem assim. Depois de percorrer três delas, percebi que o serviço de locação não é oferecido nas redondezas. Encontrei apenas cadeiras à venda, cujos valores partiam de R$ 300,00. Então busquei no Google e descobri um lugar no bairro da Pompeia. Liguei para confirmar se tinham cadeira disponível – sim, tinham – e lá fui eu.
No trajeto, perguntei ao motorista do Uber como fazem no caso de alguém chamar o carro estando de cadeira de rodas. Ele me disse que não muda nada, pois a orientação da empresa é para atender o passageiro em qualquer necessidade que tiver. O próprio tinha levado uma pessoa com deficiência na semana anterior, colocando a cadeira no porta-malas e dando uma ajuda para entrar no carro. Bom saber. Fim de corrida, muito obrigado, estou na porta do local.
O aluguel não era por diária, e sim por mês. No caso de uma pessoa pesando 80 kg como eu, daria R$ 80,00. Isso e mais a assinatura de uma nota promissória no valor total da cadeira, algo em torno de R$ 500,00.
Ao contar que o objetivo era fazer essa matéria, o senhor que me atendeu ficou com um pé atrás. Seu receio era a peça voltar arruinada. Por outro lado, também achou positivo o tema ganhar publicidade. Eu disse a ele que ia tentar tomar um ônibus. Recebi em troca uma risada sarcástica desejando boa sorte. Documentos e comprovante de residência apresentados, saí na Avenida Pompeia já a bordo da cadeira.
Senti o baque logo nos primeiros movimentos. A força exigida dos braços e ombros não é algo que eu esteja acostumado a empregar. Apesar de oferecer um uso intuitivo, a cadeira também não é assim tão estável. Já experimentou usar uma? Parece ter vida própria. E, para acrescentar um grau de dificuldade, uma chuva fina começou a cair bem nesse momento. De forma persistente e um tanto desajeitada, segui em direção à Avenida Francisco Matarazzo. Mas eu não iria muito longe.
O primeiro cruzamento com que me deparei tinha a rampa de acessibilidade para descer ao asfalto. Ainda assim e talvez por inexperiência, travei com as rodas da cadeira numa pequena fissura ao final dela.
Rebaixamento de guia na Avenida Francisco Matarazzo
Não sabendo direito como proceder, fiquei tentando sair dela no muque. Em menos de um minuto, um cara que vinha no mesmo sentido ofereceu ajuda para atravessar a rua. Aceitei de bom grado. Cortês, ainda me perguntou se precisaria de uma assistência para seguir adiante na avenida. Agradeci e disse que dali eu poderia continuar. Não contei a ele sobre a matéria.
Talvez eu devesse ter aceitado. Porque na sequência a experiência foi se tornando perigosa. Ladeira na descida, calçada molhada, cheia de desníveis e uma ausência completa de habilidade da minha parte. Naquele momento, os jurados me dariam nota zero no quesito evolução. Era grande o risco de cair com a cadeira e quebrá-la, ou até sair desgovernado para o meio da avenida. Com um sentimento de derrota, decidi empurrar minha companheira até um ponto menos íngreme do trajeto.
Se alguém testemunhou o momento em que me levantei, pode ter acreditado que um milagre aconteceu. Ou que estava à frente de um golpista. A real é que só pude fazer isso porque não sou uma pessoa com deficiência física. Quem depende verdadeiramente de uma cadeira de rodas para se locomover não tem essa opção.
Na altura do SESC Pompeia, retomei o desafio. E dessa vez consegui atravessar a rua pelas rampas de acesso sem precisar de ajuda.
Mas, no quarteirão seguinte, uma amostra de como atitudes aparentemente pequenas podem afetar de forma imensa a vida de quem tem necessidades especiais. Está vendo esse fio aí jogado na calçada?
Senti na pele o incômodo de ter que contorná-lo simplesmente porque alguém decidiu se desfazer dele por ali. Quem joga lixo na rua não percebe o efeito borboleta que isso provoca, né? Desde contribuir para enchentes até interferir no direito de ir e vir de uma pessoa com deficiência. Dar a volta no entulho caminhando não é o mesmo que circundar com uma cadeira.
Cruzei a Avenida Pompeia e fui margeando o Shopping Bourbon. Na soma total, eu tinha percorrido pouco mais de 3 quarteirões. Apenas isso e a fadiga já estava batendo. Fiquei imaginando como alguém que tem deficiência deve conviver com dores físicas diárias e de todos os tipos. Dores que se somam à dor mais profunda de viver nessa condição.
Na altura do Palestra Itália, era hora de atravessar a Avenida Francisco Matarazzo até o ponto de ônibus. Havia uma rampa de acessibilidade para descer da calçada, porém a roda travou de novo. Tentei sair sozinho e não consegui. Nisso, o sinal vermelho para pedestres começou a piscar. Tenso. Quando os motoristas dos carros já estavam engatando e eu achando que teria que roubar no jogo usando as pernas novamente, duas mãos surgiram por trás de mim e começaram a empurrar a cadeira. “Vai, vamos nessa!”. Virei e vi um rapaz de boné que não devia ter mais do que 18 anos. Se fosse chutar, diria que sua condição econômica era bem mais humilde que a minha. Me levou até o outro lado sem titubear. Agradeci encarecidamente e algo emocionado.
Já na ilha no meio da avenida, o caminho envolvia uma subidinha. Agradeci novamente e muito quando uma mulher se ofereceu para me levar até lá. Foi quando tive um estalo. De que, ao mesmo tempo em que essa é uma matéria sobre como São Paulo pode ser hostil com quem tem deficiência física, é uma matéria sobre como desconhecidos são capazes de fazer gentilezas sem esperar algo em troca.
Eu tinha certeza que pegar o ônibus seria algo traumático. Que ficaria talvez mais de hora por ali até que algum parasse. Que teria que anotar placas e fazer uma denúncia nesse parágrafo sobre como nosso sistema de transporte público vira as costas quando o passageiro está em uma cadeira de rodas.
Não sei se estava mal informado e com preconceito ou se dei sorte. Porque não levou 5 minutos de espera. O primeiro veículo com símbolo de acesso que passou, parou. E o motorista nem hesitou em sair do seu posto, abrir a rampa de acessibilidade e me levar até o espaço destinado a pessoas com deficiência.
Espaços reservados para cadeirantes em ônibus
Alguns passageiros também foram solícitos, se oferecendo para me ajudar com o cinto de segurança. Que, por sinal, é absolutamente necessário. Senão a cadeira vai e vem a cada freada.
Para descer na Avenida São João, novamente o motorista repetiu o procedimento sem qualquer esboço de incômodo. Por isso faço questão aqui e agora de mandar um salve para o Sr. Moreno, que pilota a linha 8000 Terminal Lapa – Praça Ramos. Muito, muito obrigado pela humanidade demonstrada. Torço para que mais motoristas tenham a sensibilidade do senhor.
Dali peguei a Avenida Duque de Caxias. A intenção era chegar na ciclovia da Amaral Gurgel e Rua das Palmeiras. No caminho cruzei um cocô de cachorro e fiquei imaginando o desprazer que teria sido passar com as rodas por cima dele. Assim como no caso do lixo, o que se passa na cabeça do responsável? Não quero ficar aqui dando sermão, mas só para dizer que é uma contradição se afirmar cidadão de bem sensível com o próximo e ao mesmo tempo tacar lixo na rua, abandonar cocô de cachorro, estacionar nas vagas destinadas a pessoas com mobilidade reduzida ou mesmo ocupar a faixa de pedestres com seu automóvel.
Por fim, através da ciclovia consegui percorrer o resto do caminho até minha casa um pouco mais tranquilamente. O que confirma uma impressão que já tivera quando produzi essa matéria aqui: apesar das ciclovias não serem destinadas a cadeiras de rodas, acabam sendo bem-vindas também para seu uso, tendo em vista a situação das calçadas em São Paulo.
Entrei no prédio pela garagem, pois ali há uma rampa de acesso aos elevadores. Que, dada a curvatura, se eu tivesse um real dano na coluna provavelmente não conseguiria subir sem a ajuda dos porteiros ou de algum acompanhante.
Fiquei imaginando também como as pessoas com deficiência fazem para abrir a porta do elevador. A única maneira que consegui sem levantar da cadeira foi usando o pé.
Na manhã seguinte, fui fazer um programa trivial: tomar um café na padaria. Pedi para minha esposa me acompanhar, assim poderia tirar fotos em terceira pessoa e ter uma ajuda caso precisasse.
Essa ajuda acabou sendo bastante necessária, mesmo em um percurso de apenas um quarteirão. Por ser adaptada a pessoas com deficiência, a calçada da Santa Casa me permitiu transitar sozinho. Mas, para chegar até ela, tive que ser retirado do buraco pelo menos três vezes na calçada oposta. Havia rachaduras inclusive em frente a uma daquelas lojas de produtos ortopédicos citadas no início da matéria.
Na porta da padaria, um degrau com cerca de 5 centímetros me impediu de entrar por minha própria conta. Tive que ser empinado por um policial que estava ali em frente. Ocupar uma mesa também foi uma operação complexa. A única viável era a mais perto da entrada, e ainda assim fiquei um pouco na passagem. Enquanto tomava meu café, recebi uma porção de esbarrões na parte de trás da cadeira. Sei que não foram por mal e a equipe do estabelecimento foi solícita. Porém, mais por compaixão do que por treinamento. O lugar não era adequado para pessoas com deficiência física.
Terminada a experiência, seria muito tentador jogar a conta inteira no colo do poder público. Em grande parte é dele, sim, na medida em que muitas das dificuldades que enfrentei envolveram ruas e calçadas em mau estado. Mas fica difícil atribuir ao Estado a culpa por um estabelecimento comercial em frente a um hospital não oferecer acessibilidade. Fora os obstáculos criados pelo mau comportamento dos próprios moradores da cidade.
Nunca é preto no branco. De modo geral, as pessoas foram prestativas. O que falta é essa colaboração também na estrutura física da cidade, seja no espaço público ou privado. E isso porque transitei por caminhos do Centro Expandido. Mal posso imaginar como é depender de uma cadeira de rodas em uma comunidade mais periférica.
Vale lembrar que pessoas com deficiência são, antes de tudo, pessoas. Assim como eu e você, com nome, sobrenome e muito para contribuir. A causa da acessibilidade não é exclusividade de quem é afetado diretamente por ela: deve ser defendida por todos, com ou sem deficiência física. Porque pode acontecer com qualquer um, sem distinção de cor, credo, local de origem ou condição financeira. Somos todos usuários de cadeira de rodas em potencial.
Fonte: hypeness