Ben X – A fase final conta a história de um adolescente que sofre de Síndrome de Asperger, uma forma mais branda de autismo. Com extrema dificuldade de socialização e comunicação, Ben sofre a cotidiana opressão de seus colegas de escola pública. Como refúgio contra essa vida dolorosa, Ben mergulha em Archlord, um MMORPG: massive multi-player online role-playing game – ou seja, um videogame jogado por milhares de pessoas online ao mesmo tempo, cada qual operando um personagem num mundo virtual de temática à la Tolkien. No jogo – que existe fora do filme – Ben é “nível 80”, um herói, em oposição ao “ninguém” do mundo real: tem armas e poderes cobiçados e até uma princesa apaixonada por ele.
A melhor dica para mergulhar no filme é ir munido de uma boa dose de generosidade infanto-juvenil, pois tudo nele está embebido em um olhar muito particular, indissociável de algo contemporâneo e ingenuamente jovem: da referência ao machinima à narrativa auto-referente e otimista, passando pela facilidade tecnológica de celulares, câmeras, internet e afins. Baseado num episódio real da vida de um adolescente autista oprimido por colegas de escola, o filme tenta nos manter na corda-bamba, misturando linguagens que vão do documental ao game, passando por uma ficção euro-juvenil com certos ares de Corra, Lola, Corra.
Para tentar representar essa realidade paralela na qual Ben se refugia, o filme faz uso da técnica de machinima: a captura de imagens diretamente do videogame, a partir da “interpretação” de atores-jogadores. Funciona mais ou menos assim: cada ator opera seu personagem virtual e “joga” o game, não visando a competição, mas uma atuação ficcional. A “câmera virtual”, embutida no jogo e também operada por um jogador, enquadra e grava as imagens da encenação/jogo, que depois serão dubladas e editadas, como uma animação de computador. A grande diferença entre machinima – corruptela de machine cinema ou “cinema maquínico” – e computação 3D é que as imagens do machinima são geradas e capturadas em tempo real, mantendo, assim, alguma qualidade inerente ao jogar, inclusive certas limitações que marcam a linguagem do videogame.
A técnica de machinima não foi inventada pelo ou para o filme, e tem sido explorada há pelo menos uns 20 anos, inclusive como ferramenta para o próprio cinema, sobretudo na geração de cenas de batalha e de multidões. Fora do cinema, no universo da fan culture, o machinima vem se transformando num formato de valor próprio, capaz de gerar obras tão diversas quanto a série Red vs. Blue – que problematiza com humor a natureza robótica dos personagens e cenários de games de tiro – a animações requintadas como Anna, da Fountainhead, passando por performances de humor ao vivo, como as que são feitas pelo grupo Ill Clan. O machinima chegou a um patamar já tão requintado, que conta com diversos festivais específicos, onde criatividade, invenção de linguagem e inovação tecnológica disputam os maiores prêmios.
Dentro desse cenário tão diverso, a utilização que o filme faz do machinima é ainda um tanto tímida. O máximo a que chega é entrecortar as cenas “reais” vividas por Ben com cenas tiradas do game, nas quais o personagem projeta a si mesmo como o herói Ben X e aos colegas como inimigos do jogo, na tentativa de dar sentido ao vivido a partir de seu repertório de sucesso em Archlord. Nisso, o filme parece querer deixar claro que Ben vive o jogo assim como a vida, fazendo pouca distinção entre ambos, o que não deixa de ser a grande marca dos games de personagem.
São bons momentos do filme, mas não preservam muito do frescor do jogar. Quase tudo mais se atém ao game em seu nível meramente temático: as amizades virtuais, a recorrência à violência, a natureza de sonho de quem se isola do mundo num universo fantástico de trolls, magos e outros seres, inexistentes no mundo real, mas muito reais para certo nicho de pendor fantástico como jogadores de RPG. A partir do momento em que a opressão leva Ben ao limite, contudo, a linha entre fantasia, auto-referencialidade e verossimilhança começa a se tornar perigosamente escorregadia. O que até então era uma história “baseada em fatos” começa a ficar cada vez menos verossímil, e se isto não é necessariamente ruim, requer ao menos que ajustemos nossos ponteiros com os da narração.
Certos procedimentos, como as inserções “documentais” de pais e amigos de Ben, até então usados aparentemente como estilo, começam a dar na vista, ficando mais para pegadinha do que para algo que enriqueça a narrativa. Quando a amiga virtual de Ben ganha corpo no mundo “real” do filme, tudo se complica ainda mais e qualquer carga de realidade se esvai, mesmo com muito boa vontade de quem vê. No final, a única maneira de seguir aproveitando o filme é continuar lançando a ele um olhar generoso, que compreende que este está mais para a narrativa marcada e caricata dos games, da ética da “vitória poética” – em oposição a conseqüências reais – que marca a cultura em torno de romances fantásticos e jogos online, da estética da repetição dos games e do vídeo na internet, da natureza meio autista que tem parte da cultura pop tecnológica. É um filme infanto-juvenil, mas isto não é necessariamente um defeito.
Fonte: Cinética