Deficiência física de personagens históricos é ignorada
As deficiências físicas de muitas figuras históricas conhecidas, e outras nem tanto, é um aspecto muitas vezes pouco conhecido do público.
Em um museu de Veneza há quatro estátuas colossais de cavalos em cobre. A milhares de quilômetros de lá, na magnífica igreja de Santa Sofia, em Istambul, fica a tumba do homem que roubou essas esculturas – Enrico Dandolo.
Dirigente e magistrado da República de Veneza em 1192, Dandolo liderou a Quarta Cruzada (expedição militar cristã que pretendia conquistar o Egito muçulmano) até a cidade de Constantinopla, na atual Turquia. Seu exército atingiu o coração do Império Bizantino.
Dandolo foi um líder dinâmico que reformou o sistema monetário veneziano e se tornou uma figura inspiradora no campo de batalha. Quando suas tropas flanqueavam o inimigo sob uma chuva de flechas, ele foi o líder responsável pela vitória. Seus homens foram a primeira força militar estrangeira a romper as muralhas da capital bizantina.
Dandolo morreu em uma expedição no ano seguinte. Entre seus seguidores era considerado um líder valente, enérgico e vigoroso. Para seus inimigos, era ambicioso, inescrupuloso e astuto. Mas há dois aspectos de sua vida que podem surpreender o leitor. Dandolo realizou todas esses feitos com 90 anos – e já estava cego há mais de duas décadas.
Deficientes
O líder veneziano ficou cego após levar um golpe na cabeça, quando já era sexagenário, segundo Thomas Madden, autor de sua biografia. E ele não foi o único guerreiro deficiente da Idade Média. O rei John da Bohemia, que era cego, morreu cavalgando na batalha de Crecy, contra os ingleses. Balduino 4º, rei de Jerusalém, venceu Saladino na batalha de Montgisard, em 1177, apesar de estar seriamente debilitado pela lepra.
Na lista de deficientes estão outras figuras famosas, como Ludwig van Beethoven, cuja surdez se tornou amplamente conhecida, ou Julio César – que tinha convulsões possivelmente devido a uma epilepsia.
Outro exemplo é o almirante britânico Nelson, que ao perder seu braço direito escreveu: “um almirante canhoto não voltará a ser considerado útil, portanto quanto antes eu encontre uma morada humilde para me aposentar, melhor. É preciso deixar espaço para que um homem melhor possa servir ao Estado”.
Entretanto, a maior parte das pessoas não pensa nessas figuras históricas como deficientes, segundo o sociólogo Tom Shakespeare, autor do livro Disability right and wrongs (Erros e acertos das deficiências, em tradução livre). Segundo ele, a associação de identidade com deficiência é um conceito recente, do século 20.
A cadeira de rodas de Roosevelt
“A deficiência está associada a excluídos. Quando aparece alguém como Dandolo, ele recebe um status honorário de não deficiente”, diz. “Se tiveram êxito, não podem ser deficientes. Esse aspecto de sua identidade não é priorizado”. Além disso, afirma, os deficientes sempre foram estimulados a dissimular ou esconder sua condição.
Isso ocorreu com Dandolo. “Circulavam histórias sobre como ele ocultava sua cegueira. Colocava um cabelo em sua sopa e se queixava em voz alta”, segundo seu biógrafo. Seus esforços anteciparam a atitude do presidente americano Franklin Roosevelt, mais de sete séculos depois.
Paralisado da cintura para baixo uma década antes de assumir o cargo, Roosevelt se empenhou em esconder sua deficiência. Há dezenas de imagens dele em pé, já como presidente, mas sempre apoiado cuidadosamente em algum suporte. Esse esforço seria resultado de uma suposição de que a deficiência diminuiria suas perspectivas eleitorais.
Todas as suas aparições eram meticulosamente coreografadas, para que a cadeira de rodas não aparecesse. “Não há caricaturas ou imagens de arquivo que o mostrem como deficiente, o que é extraordinário”, disse Shakespeare. No caso de Dandolo, até seu biógrafo afirmou não identificá-lo como deficiente.
Importância simbólica
De acordo com a mentalidade moderna, histórias de vida semelhantes dariam margem a mensagens de otimismo sobre o potencial de todas as pessoas com deficiência.
Mas as coisas eram diferentes na Idade Média. A grande ironia é que na época de Dandolo, os imperadores bizantinos depostos eram cegados propositalmente para evitar que voltassem ao poder. Apesar da história não ser escrita somente por meio dos feitos de grandes homens, o sociólogo Tom Shakespeare afirma que a valorização das figuras deficientes tem um propósito simbólico.
“É muito importante nomear as pessoas porque temos uma visão muito negativa [das pessoas com deficiência]”.
Fonte: BBC
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