Crianças com deficiência são craques em inventar novas maneiras de brincar
Gabriel Fernandes, 10, é fera no videogame, nem lembra quando perdeu um jogo de corrida pela última vez. Lamiss Taghlebi, 7, adora brincar de escolinha. Fernanda de Souza, 5, é a artilheira no futebol do seu quintal.
Além de craques da brincadeira, os três possuem outra coisa em comum: têm deficiência intelectual e física e andam de cadeira de rodas. “Criança sempre dá um jeito de brincar. Não importam as limitações”, diz Lina Borges, terapeuta ocupacional da AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente).
Para driblar as deficiências, as atividades são adaptadas. No futebol, por exemplo, a bola é mais pesada para que role mais lentamente, e as crianças jogam sentadas no chão.
Durante o Teleton (evento do SBT que arrecada dinheiro para a AACD), Ivan Fontenelli, 4, andava pra lá e pra cá com seu skate. Com má formação das pernas e dos braços, é com ele que o menino se locomove. “Brinco de futebol, corrida, tudo. Tenho até duas namoradas”, conta baixinho para a mãe não escutar.
‘TIA’ DAS BONECAS
Todos os dias, o quarto de Lamiss Taghlebi, 7, transforma-se em sala de aula. Enquanto ela passa a lição, Barbies e ursinhos de pelúcia prestam atenção à professorinha de cadeira de rodas. “Finjo que estou em ‘Carrossel’ e que sou a professora Helena”, conta.
A REGRA É BRINCAR
Ideias simples podem ajudar crianças na hora da diversão
Já viu boliche com canaleta para arremessar a bola? E pega-pega no colo de adultos? Essas e outras adaptações ajudam crianças com deficiência na hora de brincar.
“É muito gostoso quando alguém me pega no colo e sai correndo na hora do pega-pega”, conta Lamiss Taghlebi, 7. Crianças sem deficiência se adaptam às regras diferentes para brincar junto. A lei é se divertir sempre.
BRINCADEIRAS ADAPTADAS
Veja como crianças com deficiência brincam
FUTEBOL
Todos ficam no chão (mesmo quem anda de cadeira de rodas). Vale chutar, para quem consegue, ou jogar a bola com as mãos. Cada gol tem duas crianças, assim, uma pode ajudar a outra na defesa. A bola é mais pesada para correr mais lentamente e facilitar o jogo para quem tem dificuldade de coordenação motora.
BOLICHE
O primeiro passo é cortar um cano de PVC pela metade e revestir a parte de dentro com EVA (aquela borracha que tem em brinquedotecas e academias). Sentada na cadeira de rodas, a criança segura a canaleta no colo para ajudar a jogar e a direcionar a bola.
ELETRÔNICOS
Para brincar com carrinho de controle remoto ou utilizar o mouse do computador, as crianças usam um adaptador. Ele é fixado no brinquedo e funciona como um interruptor de luz. Basta encostar para que o brinquedo ligue ou para clicar o mouse. Muitas crianças não têm coordenação motora para acionar as funções dos brinquedos com botões muito delicados.
PEGA-PEGA
As regras nesses casos são as mesmas da brincadeira original. A diferença é que, em vez de correr atrás dos outros, as crianças são carregadas no colo por adultos. Isso pode ser utilizado também em brincadeiras de roda, como corre-cotia e passa-anel.
CASINHA
Em uma plataforma horizontal (como se fosse uma tábua), coloca-se velcro -aquelas tirinhas que “grudam” uma na outra. A outra parte do velcro é colocada em cada objeto da brincadeira (a casa, a boneca, a panelinha, o fogão, o sofá, etc.). Com isso, os objetos “ficam colados” na tábua e não caem no chão -o que ajuda a criança a encaixar as peças nos devidos lugares.
BRINCAR É NA RUA
Emely Gabriely Silva, 10, nasceu duas vezes. Até os três anos, corria e estava aprendendo a andar de bicicleta. Aí veio um caminhão e ela não viu mais nada. Quando acordou, estava sem a perna direita. Foi então que nasceu de novo: ela reaprendeu a andar e hoje se equilibra na bicicleta e até pula corda. “Não gosto de boneca. Prefiro brincar na rua”, diz.
ALTA VELOCIDADE
Todos os dias, Gabriel Fernandes, 10, espera ansioso para ir à casa da vizinha. Como o garoto não tem videogame, é lá que ele se transforma em piloto, a cadeira de rodas, em carro de corrida e o quarto, em autódromo. Gabriel pisa fundo e garante: é difícil ganhar dele em jogos de velocidade. Antes, os amigos não davam muita bola para Gabriel. Mas ele é um corredor. Rapidinho, conquistou os meninos e agora todos jogam videogame juntos.
O menino ‘cadeirantinho’
Desde quando eu era molequinho, faz teeeempo, ando montado em uma cadeira de rodas para ir daqui para acolá. Mas ser um menino “cadeirantinho” nunca me impediu de brincar e de agitar as brincadeiras da minha turma.
O meu “cavalo de rodas” já foi um navio que atravessou oceanos para combater piratas, com o pessoal se enroscando em mim. Já foi carro de Fórmula 1, com os meninos disputando quem seria o meu piloto. Dava medo da velocidade, mas, com cuidado, era muito gostoso. No futebol, fui goleiro e técnico do time. No esconde-esconde, eu tinha a vantagem de ter mais tempo para sumir. É justo, vai! No videogame, eu não precisava de regra especial, só de mais espaço na sala mesmo.
Todos podem e querem se divertir na infância, e sempre há um jeito para que até aquele colega mais desarranjado, todo tortinho, consiga brincar junto, ensinar sua maneira de jogar, de se segurar no balanço, de virar a figurinha no “bafo”.
O colega cego, surdo, com paralisa cerebral, “cadeirantinho” ou que tenha qualquer diferença quer aproveitar o mundo do jeito que todos querem. E sempre é possível colocá-los na roda, basta usar a imaginação, abrir bem os braços e dar um sorriso de “seja bem-vindo”.
Fonte: Folha de São Paulo
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